30 de outubro de 2012

Dançando a Bordo: Relato dos meus processos criativos em dança



SOBRE AS DIFICULDADES DE ESTAR A BORDO

Quando criança, eu era uma leitora assídua dos gibis da Luluzinha e como ela tinha um “Querido Diário”, cismei que teria um também. Mãe, eu quero ter um diário! E lá fomo nós na papelaria comprar aquele que eu acreditava que seria meu companheiro de segredos. Escolhi um modelo com fecho-cadeado, sim porque todo diário que se preze deve ser capaz de manter a sete chaves os segredos a ele confiados guardados. O meu tinha apenas uma frágil chavinha, que eu cuidava de manter bem escondida dos curiosos da família, mudando o local do esconderijo de tempos em tempos. Apesar de sentir orgulho do meu cobiçado tesouro, essa minha primeira experiência com um diário não foi promissora. O fato é que meu lado Emília sempre superou o meu lado Luluzinha. A caneta nunca foi páreo para a língua! O pouco da minha tagarelice que foi deglutida e chegou até meus dedos só aconteceu por pressão escolar (tenho que escrever porque é para nota).

Uma década depois, remexendo nos meus guardados, reencontrei o famigerado caderninho trancado. Como já não me lembrava onde havia sido o último esconderijo da chavinha, cortei a alça onde se prendia o fecho-cadeado e me pus a folhear as páginas praticamente em branco, quase todas encabeçadas com a frase “meu querido diário”, a mesma usada pela Luluzinha. Naquela época o que importava era TER o bendito diário, e não registrar alguma coisa nele. Pobre diário, nunca havia sido “querido” de fato. Nunca lhe confiei nenhum segredo, apenas breves registros de acontecimentos. Coisa de criança boba isso de ter um diário, pensei ao jogar no lixo o inútil caderninho. E assim, nunca mais quis saber de diários!

Em 1989 entrei para o curso técnico profissionalizante em química. Meus escritos, quase sempre analítico-descritivos, foram sendo eficientemente moldados na impessoalidade fria das ciências exatas (e posteriormente nas da saúde) onde a credibilidade do processo é diretamente proporcional ao distanciamento entre o observador e seus processos. Durante treze anos de minha vida pratiquei confortavelmente tal distanciamento, e cada vez mais recebia elogios pela minha escrita clara, coerente, neutra, impessoal. Afinal, cientista que se preza não se envolve com seus próprios processos! Descrever e analisar meus processos de fora nunca foi um problema. Eu me orgulhava desse meu estilo “científico” de escrita e tinha plena convicção de era assim que tinha de ser feito.

Fui uma escritora eventual e feliz até 2003, quando, durante minha especialização em saúde coletiva, foi proposto um diário de campo como atividade de estágio. Fiz uma descrição primorosa das atividades da primeira semana e fiquei chocada quando a orientadora apontou como problema o que eu considerava como a minha maior virtude: “- Seu texto está muito bem escrito, mas você não está presente nele. É preciso observar os processos de dentro deles”. Aquilo me soou como uma espécie de blasfêmia! Não podia conceber que verbos conjugados na primeira pessoa do singular e plural comprometessem a credibilidade da minha escrita! Não podia aceitar que meus textos fossem invadidos por EUs e NÓSes! Já não me sentia segura frente aos meus próprios processos. Era como me despir na frente de estranhos. A Ciência jamais perdoaria tal heresia. Maldito Diário de Campo!

Mas não me deixei sucumbir sem lutar. Insisti na impessoalidade, construindo frases decentemente iniciadas com “realizou-se, obteve-se, observou-se, conclui-se”. Mas meus orientadores não me deram trégua. Continuaram me atordoando com a mesma pergunta “- Cadê você no texto?”. Aos poucos e muito a contragosto, acabei me permitindo o uso de EUs e NÓSes, estes últimos menos sofrido, posto que podia dividir a culpa de tal infração com outras pessoas. Os EUs continuavam a ser um árduo exercício de imersão. Foi então que me dei conta de que vivia um paradoxo: enquanto lutava para me manter fora dos meus escritos, o meu discurso falado era sempre cheio de EUs! Quem sabe eu não seja um caso de TBP (transtorno bipolar pronominal): momentos de EUgocetrismo verborréico intercalados com momentos de CALE-SEgrafia autoexcludente (será que existe remédio para isto?)

Tive que lidar com esse problema durante todo o ano de 2003. Respirei aliviada quando ele terminou! Agora, oito anos depois, o módulo Estudos dos Processos Criativos I resolve evocar o fantasma do Maldito Diário. Primeiro rejeitei-o, depois, veio o bloqueio: não tenho vontade de escrevê-lo. Depois me permitir arriscar, pois agora o contexto é outro. As Artes e as Ciências Humanas têm me animado a estar a bordo dos meus processos criativos. Os EUs e os NÓSes já não me incomodam mais, pelo contrário, gosto de me ver grafimaterializada naquilo que escrevo, afinal as palavras faladas são levadas pelo vento.

Então, decidi “chutar o pau da barraca”, autoprofanar a minha “escrita cientificamente correta”. Mais do que um simples registro das minhas vivências durante o módulo de Estudos dos Processos Criativos I, este diário é um exercício de estar a bordo de mim mesma, de trilhar novos caminhos textuais, de deixar que minhas percepções e sentimentos durante os meus processos de criação em dança guiem os meus dedos no teclado. Diferentemente do que fiz a vida inteira, não me preocuparei em descrever detalhadamente todas as atividades da qual participei. Selecionarei os aspectos que mais despertaram interesse e refletirei sobre ele. Tomarei licença poética e me permitirei todos os neologismos que tiver vontade. É bem possível que essa minha insurreição resulte em um texto mal escrito, desconexo, incoerente, confuso ou até mesmo ridículo. E daí? E se assim for, o terá sido em conseqüência de possíveis turbulências vividas durante tais processos em que estive a bordo. Assim, é de minha livre e espontânea vontade me permitir “surtar” para desfrutar dessa oportunidade (talvez única, talvez a primeira de muitas) de falar sobre mim mesma. Bem vindo a bordo e boa leitura!

SOBRE A TRANSVERSALIDADE ENTRE OS MÓDULOS

A presença de Clara Trigo durante a primeira aula de Estudos do Corpo I (ECO I) me deixou ao mesmo tempo feliz e confusa. Seria a ela a “professora a contratar” para ECO I ou fora Estudos dos Processos Criativos I (EPC I) tinha mudado de horário? Nenhuma coisa nem outra, ela havia acordado com as galinhas apenas para participar da aula e conhecer a turma mais cedo. Notebook ligado, ela ora digitava, ora fazia um pedaço da aula, ora parava para conversar com Gilsamara ou Marcinha. E a minha curiosidade só aumentava. Criativa e irreverente, o que estaria ela “aprontando” com aquela visita temporã?

Tive que esperar até a aula de EPC I para entender o sentido daquela visita. Clara nos propôs uma atividade de criação em dança a partir do que tínhamos vivenciado na aula de ECO I. Gosto da proposta de transversalizar os módulos (pena que os Estudos Críticos Analíticos sempre fiquem de fora). Essa disposição de Clara em extrapolar seu horário de trabalho para que, desde o começo, possamos relacionar nossos futuros processos de criação em dança com os movimentos estudados em ECO I só aumentou a admiração que tenho por ela desde o semestre passado, quando tive o prazer de ser sua aluna em ECO IV.

Clara tornou a fazer isso outras vezes mais. Acho que sua estratégia de trabalho contribuiu para o aparecimento freqüente e espontâneo de vários movimentos que temos estudado em ECO I durante o atual processo criativo coletivo da turma. Quando estou improvisando e estes movimentos emergem, fico feliz em perceber que eles ficaram registrados no meu corpo mais do que eu supunha, posto que sinto uma certa dificuldade em memorizar seqüências.

SOBRE O USO DO TOQUE COMO ESTÍMULO

O toque para mim é talvez o mais poderoso estímulo para a improvisação. Neste semestre fizemos vários experimentos utilizando o toque. Um dia a sala foi dividida em grupos de quatro a cinco pessoas duas situações distintas, onde se faziam necessárias entrega e confiança para trabalhar com os olhos fechados. Num primeiro momento o desafio era deitar no chão e relaxar o corpo de modo a permitir que os outros membros do grupo o manipulassem. Percebi a necessidade de confiar para perder o medo de ser machucado, estar disponível para deixar-se levar, sem deixar de desempenhar um papel ativo. Gosto muita dessa entrega. É uma sensação parecida a que sinto durante o contato de improvisação e as danças de salão. Chegar neste estado ótimo de relaxamento que permita a manipulação do outro, mas que não implique num abandono de si mesmo só é possível se houver concentração e entrega de ambas as partes. Para mim foi um exercício muito gostoso!

Na segunda situação, o desafio era praticamente o oposto: quem estivesse de pé no centro da roda deveria enrijecer o corpo para tornar possível ser empurrado pelos demais colegas do grupo. A confiança e a concentração continuaram sendo necessárias para resistir à vontade de abrir os olhos pelo medo de cair. Entretanto a condição corporal neste momento foi o contrário do momento anterior: a imobilidade promovida pela rigidez era imprescindível para o trabalho daqueles que empurravam.

Após o exercício discutimos sobre a compreensão dessa “entrega” como corpo disponível para a interferência do outro em relação à idéia de passividade sem autonomia. Clara colocou que “o tempo todo estamos negociando entre as possibilidades e as regras”. Essas discussões sempre me interessam muito, pois me são úteis para refletir sobre muitos aspectos da minha prática corporal e pedagógica nas danças de salão. Outros pontos levantados e que achei especialmente interessantes foram sobre a confiança transmitida pela qualidade do toque, sobre a necessidade que o dançarino tem de se dispor ao risco, sobre comprometimento do grupo em um trabalho que foi, ao mesmo tempo, coletivo e individual.

Reconheço ainda que busco o toque como estímulo mesmo durante um aquecimento improvisado que começou individualmente, onde escolhi partir dos rolamentos de Gilsamara buscando no chão um substituto para a minha “dependência epidérmica”. Fico animada quando ao saber que vamos trabalhar em duplas! Vejo que só sobrou Carol, então vou deslizando pelo chão até ela e, tão logo a distância permita, eu toco seu corpo e a gente começa a improvisar a partir do contato. Reconhecemos isso logo de cara (“tá virando contato, né? Diz Carol).

O toque da pele é um estímulo mais eficiente que o chão e por isso me sinto mais motivada a dançar em dupla. Trocamos de dupla e eu dancei com Jamile. Dessa vez, foi ela quem me tocou primeiro, me levando pela mão. Alguém segurando a minha mão me remete imediatamente a minha prática de danças de salão. Comecei a variar as qualidades do toque. Juntamos-nos a outra dupla que estava próxima por solicitação de Martha. A improvisação por contato continuou.

Durante a discussão coletiva levantou-se a questão da condução (opa, isso aí muito me interessa!). Nas duplas, trios, ou grupos é relevante que exista uma condução ou um condutor(a)? É possível haver condução sem perder autonomia? Achei legal Viola ter utilizado o termo “proponente de movimento”, o mesmo que adotei há alguns anos nas minhas aulas de danças de salão. Renner falou em “pedir a permissão do toque”, no sentido de respeitar a privacidade do corpo do outro. Alguém observou que “quando a gente se acostuma com o corpo de alguém e depois muda , há um certo choque até se acostumar de novo”. Alguém falou que o olhar cria uma “predominância” sobre os demais sentidos, podendo mesmo “atrapalhar na intimidade de dançar com o outro”.  Muito do que foi discutido neste dia eu transpus para minhas reflexões nas danças de salão.

STUDIEN FÜR VIOLA (ESTUDOS PARA VIOLA)

Sei que tudo o que vivenciamos tanto nas aulas de EPC I quanto fora delas contribuiu para o nosso atual processo “coletivo-unificado” da turma (leia-se “grupão”). Mas se eu fosse escolher um momento par começar a contar a nossa história, começaria no dia 11 de abril, quando experimentamos pela primeira vez a proposta de Viola, nossa colega alemã com pinta de prenda gaúcha, inspirada nas estratégias de criação das poesias concretas que Clara nos mostrou na aula anterior.  E assim nasceu o que batizei como Studien Für Viola.

Neste dia eu estava exausta da aula de ECO I e confesso que estava achando complicada a proposta de Viola, que desenhava com esmero e precisão vinte pontos eqüidistantes entre si, arranjados em formato losangular. Olhei tanto para aqueles losângulos e via moléculas de benzeno (que são hexágonos e não losângulos). Mas nem mesmo todo o meu gosto pela simetria conseguia me animar, pois havia muitas coisas não me agradavam.

Como relatei no semestre passado há muitos anos atrás perdi a motivação para a dança solo. Já as “dinâmicas de multidão” (carnaval dentre outras festas populares) me provocam certo tipo de pânico. Então imagine o meu estado de ânimo frente à perspectiva de experimentar as duas coisas ao mesmo tempo! Embora sem a mínima disposição, eu me resignei a participar do experimento. Uma eternidade parece ter se passado até que Viola estivesse satisfeita com as nossas posições iniciais (acho melhor alguém trazer trena e giz na próxima aula, para ela marcar os lugares no chão).

Entendi que a idéia era reproduzir o movimento da pessoa do seu grupo que estivesse à frente dos demais, uma espécie de líder. A mudança de direção provocava a mudança de liderança. Pelo menos não terei de decorar seqüências, pois cada um vai improvisar a sua. Então é só imitar o líder e rezar para a liderança não virar para o meu lado. 

A primeira experiência foi sem música (Senhor tem misericórdia de mim!). Eu me concentrava para me movimentar mantendo o bendito quadrado ao qual pertencia. Estava me sentindo um pino preso no chão, que podia mudar de direção, mas tinha mudar a distancia dos outros pinos. Paramos e Viola quis experimentar algumas modificações ao mesmo tempo, e aquele experimento me parecia cada vez mais confuso e desanimador.

A coisa melhorou um pouco quando colocaram músicas, mas algumas das músicas escolhidas tinham a batida muito evidente e a turma entrou numa espécie de aeróbica chata e desgastante para mim (decididamente estou ficando velha!). Gente, que tal experimentarmos outras músicas? Graças a Deus a turma concordou. Aos poucos os quadrados foram dando lugar a outros arranjos e foram surgindo solos, duos, trios e outros grupos maiores, que a todo o momento se rearranjavam. Viola agora nos vê como constelações.

Acho que o registro em vídeo para posterior análise dos nossos processos tem sido determinantes para a evolução do mesmo. A sugestão de Martha para realizarmos entradas e saídas foi um divisor de águas. A idéia da liderança foi a que mais permaneceu, mas com novas regras silenciosamente acordadas durante as experimentações, que agora tomaram formatos de Jam Sessions.

Improvisar junto tem gerado intimidade entre o grupo, que tem resultado no desenvolvimento tanto individual como coletivo. O vocabulário de movimentos foi ampliado (acho que as aulas de ECO I têm contribuído para isso). A percepção do espaço cênico mudou. Parece já haver uma preocupação em preencher os espaços vazios, seja com dançarinos, seja com elementos cênicos. A idéia de sincronia se mantém mesmo quando existem diversas células coreográficas em cena. Cânones também tem aparecido. Descobrimos que podemos usar a parede, a barra, até mesmo as janelas.

Não saberia dizer em que momento a coisa começou a ficar divertida e motivadora para mim, que a cada dia me surpreendo participando com prazer de Studien Für Viola.


Relatório final apresentado como avaliação do componente Estudos dos Processos Criativos I, sob orientação das professoras Clara Trigo e Martha Saback em 2012-1.

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