26 de junho de 2011

Estudos Críticos Analíticos III - puro deleite

Faltam apenas duas semanas para o final deste semestre letivo na UFBA. UFA! Não vejo a hora de ficar de férias! Estou realmente cansada, exausta, pois mergulhei fundo em cada um dos quatro componentes curriculares que me matriculei. Sei que quatro parece pouco, mas em se tratando de UFBA, é overdose. A partir de agora, apenas duas, ou no máximo três disciplinas por semestre.

O texto que posto a seguir apresentei como última avaliação da disciplina Estudos Críticos Analíticos III, sob orientação de Daniela Amoroso e Helena Katz...Sim, ela mesma, Helena Katz em carne, osso e SKYPE! Explico o porque da minha tietagem. É praticamente impossível passar pela Escola de Dança da UFBA sem se deparar com o nome de Helena Katz, seja como autora de textos, de prefácios de livros, seja como referência de algum texto lido. Aliás, ela foi meu pé de coelho nas vagas residuais como contei em outra postagem, me salvando durante a avaliação textual, quando, por erro de comunicação, eu só tinha lido um dos três textos indicados. Durante o sorteio do ponto, eu clamei em silêncio a Helena e ela me atendeu. Por esta e outras razões eu digo: obrigada Helena!

Por razões diversas, em grande parte das nossas aulas Helena participou via Skype. Apesar das dificuldades técnicas, a sinergia entre as professoras (que ainda contou com a colaboração da então mestranda Lauana) fez com que ECA III se transformasse em um sucesso de bilheteria. Vocês foram nota 10!

QUESTÃO: DENTRE AS ABORDAGENS CRÍTICO-ANALÍTICAS QUE TRABALHAMOS, QUAL A QUE MAIS LHE INTERESSOU? POR QUÊ? EM QUE MEDIDA ELA NOS AJUDA A PENSAR A PRODUÇÃO ARTÍSTICA DE HOJE?

TODAS! Cada um dos conteúdos, sem exceção, me despertou grande interesse. Primeiramente, pela maneira como foram abordados, voltados sempre para a compreensão da construção artística contemporânea em dança no Brasil. Os muitos e diversos textos escolhidos foram discutidos considerando suas realidades (temporais e geográficas) e atentamente relacionados com o contexto ao qual estamos inseridos. Apesar de organizadas em seis blocos, cada nova discussão foi se costurando com as discussões anteriores. O sucesso de tal contextualização resultou para mim em um grande bloco coeso de conhecimentos tão fortemente interligados entre si que qualquer tentativa minha em dissociá-los resultaria inevitavelmente em danos.

Entretanto, por questões práticas, selecionei o bloco das abordagens pós-coloniais para refletir sobre a produção artística em dança, pois considero que começar as discussões por este bloco foi uma estratégia de sucesso para manter o foco sobre a nossa realidade artística durante todo o semestre. Para isso, utilizei as anotações que fiz em meu caderno durante as aulas e me permiti correr o risco de experimentar um formato de escrita que se aproxime da organização caótica das minhas lembranças. Ou seja, mais dúvidas do que respostas...

As linhas de Boaventura separam o tudo do nada; o visível do invisível; o que existe do que não deve existir. Que discursos e atitudes colonizadoras geram invisibilidades? Com quais linhas abissais tenho me deparado enquanto “estudançarina”? Que abismos tenho construído com minha prática artística-pedagógica? Tenho sido ao menos capaz de reconhecê-las? Ações-com-clinamem: estratégia de resistência à opressão do discurso colonizador. Que desvios posso criar para subverter as dificuldades com que me deparo? Afinal, a contemporaneidade na dança é uma questão de atitude e não de técnica em si.

Mestiço, híbrido ou crioulo? Afinal, que corpo eu tenho (ou preciso ter) para ser uma dançarina contemporânea? Que tipo de treinamento preciso? Como fazer bem? Reflexões e confusões vão impregnando seriamente a turma...Qual o termo mais apropriado para falar do corpo colonizado que dança na contemporaneidade? Mais importante do que a carga etimológica do termo escolhido é estar atenta para utilizá-los livre dos discursos subordinados a noções de origens, raízes, essências e tradições. É não ter medo de se tornar poroso. È estar disposto a se contaminar com as informações do mundo que nos rodeia física e virtualmente. É aceitar o conflito oriundo da justaposição dos diversos “alimentos” culturais que antropofagicamente digerimos e metabolizamos para tornar nosso. É conviver com as tensões das diferenças sem necessidade de anulá-las. É aprender a misturar sem deixar dissolver.

Então aparece Lepecki e problematiza a dança contemporânea, arte que se deseja ser um “pensar em ação”, desde a década de 1960. Lançando-se para fora das cadeias disciplinantes da técnica, a Dança Contemporânea volta sua atenção à materialidade social do espaço circundante, produzindo ações de resistência. Entretanto, a vontade cega de mover-se sem prestar contas a ninguém, de entrar no movimento pelo movimento, de reproduzir sem produzir, resulta na propagação de clichês e conseguem subjugar ainda mais os corpos que se acreditam “descolonizados” às lógicas neocolonialistas ocultas sob a democracia da globalização. Cuidado com o chão onde se dança, provoca Lepecki! E propõe uma política física e ideológica do chão impecavelmente liso onde a dança nasceu e parece ainda preferir acontecer. Chão terraplanado pelo colonizador, que oculta fantasmas que a história enterrou sem cuidados. Até que, mais dia menos dia, dele emergem seus relevos indesejáveis, tais como dentes no sorriso do lobo (são para te comer melhor...). - Olha o preto!, sopra o lobo e põe abaixo Frantz Fanon. Em quantos relevos devo tropeçar sem (querer) me dar conta?

O desafio: pensar/fazer dança dentro da nossa realidade pós-colonial globalizada, com “corpos googles” a dançar pela cyberesfera, ávidos por informações e sujeitos aos refinados controles sociais. Como não ser clichê na civilização dos clichês?

Texto elaborado para a quarta avaliação do Módulo Estudos Críticos-Analíticos III sob orientação das professoras Daniela Amoroso e Helena Katz em 2011-1

19 de junho de 2011

O que seria ERRAR nas danças sociais a dois?

Esta semana essa pergunta foi lançada no grupo Ritmos 3 do Facebook do qual faço parte. Posto aqui a minha resposta:

Erra quem utiliza a música como uma base rígida para dançar, acreditando que ela "pede" uma determinada forma de dançar ao invés de utilizá-la como um estímulo para o movimento. Erra quem abdica de si mesmo para dançar "papéis" ( de homem, de mulher, de malandro, de latin lover, de matuto, etc) Erra que dança preocupado com hierarquias (do tipo "quem está conduzindo quem", que nível eu sou) e perde a oportunidade de crescer na construção de uma dança a dois. Erra quem não tem orgulho de ser o que é e dança tentando ser o que não é (ex: dançar gafieira se achando carioca, dançar tango se achando argentino, dançar salsa se achando americano ou cubano, etc). Erra quem dança apontando falhas em si ou no outro.

17 de junho de 2011

Aquilo de que somos feitos

Criação: Lia Rodrigues Intérpretes-cocriadores: Amália Lima, Allyson Amaral, Gustavo Barros, Ana Paula Kamozaki, Leonardo Nunes, Thais Galliac, Calixto Neto, Carolina Campos, Volmir Cordeiro, Priscila Maia,Clarissa Rego, Gabriele Nascimento, Jeane de Lima, Luana Bezerra. Luz: Milton Giglio Música: Zeca Assumpção Colaboração na criação: Marcela Levi, Gustavo Barros, Marcele Sampaio, Micheline Torres , Rodrigo Maia

EXIBIDO EM 17/10/2008 NO TEATRO DO MOVIMENTO (ESCOLA DE DANÇA DA UFBA)

SALVADOR / BAHIA

Assisti ao espetáculo Aquilo de Que Somos Feitos durante a 5ª edição da Mostra SESC de Artes em Salvador (2008). O espetáculo teve apresentação única no Teatro do Movimento da Escola. Apesar de terem se passado mais de dois anos, escolhi falar deste espetáculo porque nunca consegui esquecer o impacto de tê-lo assistido. Devido ao tempo decorrido, busquei apoio na dissertação de mestrado de Dani Lima1, que se propôs a analisar este espetáculo. Em sua análise, ela o dividiu em duas partes principais às quais nomeou Materialidade (parte 1) e Comunidade (parte 2). Cada uma destas partes é, por sua vez, composta de seqüências coreográficas distintas ou blocos: “Apresentação”, “Fila” e “Empilhamento” (parte 1), “Solo” e “Grupo”(parte2)”.

Entrei no Teatro do Movimento e sentei em um lugar qualquer do chão, pois não havia nenhuma estrutura cênica que determinasse um lugar fixo nem específico para a plateia. A luz de plateia ainda estava aberta, o que me deu a sensação de que o espetáculo demoraria um pouco para começar. Quando as pessoas já se encontravam dentro do teatro, a maioria sentada no chão e conversando entre si, eis que um rapaz se levanta da plateia e tira toda a roupa. Imediatamente, fez-se um silêncio total. Ele olha as pessoas boquiabertas ao seu redor e, então, ordena: “Vocês, daqui para lá!”, delimitando assim o seu espaço de apresentação e a posição dos espectadores que, rapidamente, se adequam à ordem recebida. Sem qualquer música e destacado por um foco de luz branca e difusa, o dançarino se move produzindo imagens bizarras com seu corpo. Levanta-se, atravessa a plateia e delimita o novo espaço de apresentação, agora juntando-se a outro bailarino, também nu.

Dani Lima considera que no bloco “Apresentação”, (composto de quatro seqüências: um solo, um trio, um duo e outro solo) como um momento de “valorização da dimensão material do corpo”.

“Esta materialidade aparece como um organismo que tem características próprias de forma, textura e mecânica. O nu, que está presente em todo este momento, torna-se condição fundamental para que este corpo – que é carne, matéria, forma orgânica, volume e massa – possa aflorar aos olhos do espectador. Um corpo que, embora nu, não tem sua sexualidade especialmente valorizada, ao contrário, parece empenhado em se tornar um volume dessubjetivado”. 1

Todas as seqüências se desenvolveram em silêncio, delimitadas espacialmente por um foco de luz branca e difusa. A cada nova seqüência coreográfica, um novo ponto de vista é sugerido pelos dançarinos nus, propondo que os espectadores estejam sempre trocando de lugar, embora mantenham a relação de frontalidade em relação aos bailarinos. Através de movimentos lentos e sutis, os bailarinos (sempre nus) vão se desfigurando causando estranhamento na forma habitual de apreciação desses corpos que dançam.

“Este corpo explora, valendo-se apenas dele mesmo, formas estranhas, não reconhecíveis enquanto características do corpo humano, formas estas que sugerem as mais variadas associações com figuras que ocupam nosso imaginário, como corpos despedaçados, invertidos ou deformados, animais bizarros e monstros. É curioso notar que nenhuma destas figuras é explicitamente citada. Não há truques ou mágicas, para além do jogo explícito de ilusão de óptica, que nos direcionem a imaginar coisas que não estão ali. Apenas um e às vezes dois ou três corpos que se contorcem, se alongam, mostram ângulos e combinações inusitadas, partes e movimentos pouco vistos comumente (seja na vida, seja na dança), e, no entanto, o espectador é levado a criar sentidos para o que vê”. 1

Começa o segundo bloco da parte 1, a “Fila”: em cena cerca de oito bailarinos nus, enfileirados de pé, lado a lado, imóveis durante alguns segundos “nas posições da rosa dos ventos (de frente, de lado, de costas)”, para em seguida executarem uma seqüência em uníssono que começa com movimentos lentos dos braços e finaliza com todos os corpos estendidos no chão. A partir deste momento, o espetáculo vai construindo a relação entre ocorpo- matéria” do momento inicial e o ambiente no qual ele está inserido. O tempo parece dilatar-se, como se antecedesse um momento de tensão. E é o que acontece no bloco seguinte.

O “Empilhamento” foi a parte do espetáculo que mais me impressionou. Nus, todos os bailarinos em cena vão ao chão e deitados de barriga para cima, olhos abertos e fixos no nada, eles começam a se deslocar e se amontoar uns sobre os outros, tal como peixes recém tirados da água. O amontoado de corpos também me fez lembrar os corpos empilhados nas covas dos campos de concentração. Pedaços de carne que se debatiam de forma caótica, como se lutassem para não deixar de existir. Mesmo nus e tão próximos, o referencial humano ficava cada vez mais distante. A pilha de corpos tão logo se forma é desfeita, e os bailarinos-coisas se deslocam em movimentos convulsivos em direção à plateia, literalmente atropelando as pessoas sentadas em seu percurso. Os espectadores aturdidos reagem inseguros sobre o que devem fazer. Alguns ainda tentam segurá-los, mas a maioria acaba reagindo com repulsa, desvencilhando-se o mais rápido possível do contato com aqueles pedaços movediços de carne. Os bailarinos-coisas se juntam novamente, próximos à parede oposta de onde o empilhamento começou. A plateia é “deixada em paz”, mas uma tensão desconfortável se instala entre nós, espectadores, até o final do espetáculo.

Para Dani Lima, a segunda parte do espetáculo, “Comunidade”, está mais próxima da perspectiva de representação: corpo, figurinos, música e estrutura composicional convergem no sentido de trazer para a cena um universo referencial. “O uso de roupas características da juventude, a marcha militar, as palavras de ordem e slogans, assim como a tonicidade explosiva empregada na execução dos movimentos e falas dos bailarinos, tudo isso tematiza a efervescência política dos anos 1960/70”. 1

No bloco 1, “Solo”, o mesmo bailarino que se despiu no inicio, agora se desloca com roupas de uso cotidiano por entre os espectadores (que se encolhem durante sua passagem) com movimentos que remetem às artes marciais, ao mesmo tempo em que diz, de forma aparentemente aleatória, nomes de países, guerras, calamidades, slogans políticos e comerciais. Enquanto isso, os demais bailarinos que estavam contra a parede se levantam e se vestem. A roupa parece devolver ao bailarino sua condição humana e agora, sua torrente de suas palavras é que parece querer empilhar-se sobre a plateia, como bem o faz o bombardeio publicitário que nos atinge diariamente sem sentirmos. Como nas palavras de Giles Deleuze, citado em Rosa Primo:

“Informar é fazer circular uma palavra de ordem, ou seja, quando nos informam alguma coisa, nos dizem o que julgam que devemos crer...Não nos pedem para creer, mas para nos comportarmos como se crêssemos...O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema de controle”. 2

Não posso recordar com precisão, mas acredito que foi no intervalo entre os blocos da segunda parte que as luzes da plateia se acendem e o espetáculo é “interrompido” com a entrada da coreógrafa. Lia Rodrigues que exibe um banner onde se lê “Patrocínio da Petrobras”. Ela, então, enrola o banner encobrindo a palavra patrocínio e diz que está mostrando o banner porque faz parte do contrato a exibição da marca patrocinadora. Então, de crua e objetiva revela que tal patrocínio é, na verdade, um financiamento, visto que a verba recebida foi captada através da Lei Rouanet e que, portanto não saiu diretamente dos cofres da empresa. A intervenção inesperada de Lia convida a plateia a refletir sobre a política brasileira para financiamentos artísticos. Ela sai de cena e a luz volta ao estado anterior.

No último bloco da parte 2, “Grupo”, os bailarinos delimitam com fita crepe um espaço central onde acontecerão as “apresentações” e um espaço marginal, onde o público deve se colocar. Todos os bailarinos aparecem vestidos com roupas cotidianas joviais, o que os aproxima da condição de pessoas comuns. Ao som de uma espécie de marcha militar, eles dançam (primeiro um quarteto, depois pequenos solos e duos, por último em grupo), e entoam palavras de ordem, discursos, canções-símbolos e slogans políticos. Juntamente com a plateia, eles parecem formar um grande exército do consumo e do progresso. As falas não dão conta da mesma complexidade das imagens, mas é inegável que existe ali uma dramaturgia de imagem e sons.

Em Aquilo de Que Somos Feitos tudo é produto: corpo, fala, apresentação, roupas, dança. Tudo é crítica, que não dissocia forma de conteúdo. Acredito que a escolha pela não delimitação entre palco e plateia e a interação com os dançarinos em certos momentos do espetáculo exigi um posicionamento do espectador, o que me pareceu totalmente coerente com a proposta de reflexão política do espetáculo. Ficar neutro é simplesmente impossível. Observei as mais diversas atitudes dos espectadores: surpresa, assombro, choque, rejeição, nojo, rejeição, risos. Impossível ficar indiferente. Três anos depois dessa experiência, os ecos deste espetáculo ainda são muito claros na minha memória.

1. LIMA, Dani. Corpo, política e discurso: a dança de Lia Rodrigues”. Disponível em <https://docs.google.com/Doc?id=dgrjd8pf_1csgbswfm&pli=1>. Acesso em 01/06/2011.

2. PRIMO, Rosa. “Ligações da dança contemporânea nas sociedades de controle”, pg. 107-122, em Lições de Dança 5. Rio de Janeiro: Editora UniverCidade, 2005.

Texto elaborado para a terceira avaliação do Módulo Estudos Críticos-Analíticos III sob orientação das professoras Daniela Amoroso e Helena Katz em 2011-1

A CIVILIZAÇÃO DO CLICHÊ: dançar na contemporaneidade das sociedades de controle

“O saber-fazer na dança contemporânea seria descontrolar o corpo, quebrar os modelos, escapar dos diversos condicionamentos. Entretanto, apesar da abertura e hibridações de estéticas e trabalhos corporais, nunca antes houve uma tão intensa e rápida produção de clichês”.

Neste texto, Rosa Primo1 utiliza como marco teórico para suas reflexões sobre dança os pensamentos dos filósofos Michel Foucault e Giles Deleuze. Foucault apresenta as “sociedades disciplinares”, modelo que vigorou desde o século XVIII até a primeira metade do século XX, onde os indivíduos eram “docilizados” dentro de “instituições disciplinadoras” (escola, família, hospital, prisão, fábrica) através de “técnicas” como confinamento, normatização, exclusão, vigilância e punição/ recompensa. Contudo, Giles Deleuze aponta que a partir da segunda metade do século XX, os “muros” de tais instituições começam a desmoronar e a visão de mundo concebido a partir de dicotomias pretensamente estáveis se esfacela. Entretanto, nas emergentes “sociedades de controle”, a lógica disciplinar se encontra ainda se encontra presente, porém “fluidamente generalizada”, por todo campo social. Tais controles passam a acontecer através de dispositivos sofisticados, disseminados e naturalizados em nosso cotidiano, passando despercebidos e por vezes até mesmo desejados. Segundo Sônia Mansano, “a palavra dispositivo diz respeito a determinada maneira de dispor , de ordenar, de posicionar estrategicamente sujeitos e equipamentos. Junto com essa disposição são produzidas formas específicas de saber que, por sua vez, subsidia os programas institucionais, as regras de conduta e os diversos procedimentos de normalização”. 2

A autora afirma que as danças contemporâneas não são definidas por uma técnica e sim pelo seu projeto estético. A partir de um entendimento da lógica disciplinar como “fechada, quantitativa e geométrica” e da lógica de controle como “aberta, qualitativa e expressiva”, ela propõe uma analogia de tais lógicas respectivamente com o balé clássico e com a dança contemporânea. Entendendo que o balé clássico se configura a partir de um modelo corporal homogêneo e pré-determinado e a dança contemporânea por uma multiplicidade de técnicas e heterogeneidade corporal, ela questiona “o que no balé clássico permanece na dança contemporânea, embora funcionando em lógicas diferentes e como isso chega à dança, mobilizados pelos mecanismos da sociedade de controle”. 1

Antes consideradas alternativas, as práticas de educação somática e de análise do movimento se inseriram efetivamente na dança contemporânea, mobilizando bailarinos a considerar a singularidade de cada corpo em suas investigações. Entretanto, apesar da possibilidade dessas práticas de libertação dos “modelos sensório-motores interiorizados”, elas parecem ter sido capturadas pelo modismo, contribuindo assim para o condicionamento de corpos a esquemas repetitivos que resulta na produção de clichês: “ter consciência de seu próprio corpo tornou-se “material de moda”. E como disse Jean Baudrillard, há moda a partir do momento em que uma forma já não se produz segundo as suas determinações próprias, mas a partir do próprio modelo – isto é, nunca é produzida, mas sempre e imediatamente reproduzida” 1. Dessa forma, pode-se dizer que a padronização de movimentos é uma ações do balé clássico que permanece na dança contemporânea, embora nesta última tal processo pareça se dar “sobretudo no interior de cada corpo, não apenas sobrepondo-se a todos os corpos, mas compondo-se com cada corpo 1.

Rosa Primo sinaliza dois “campos de visibilidade” onde tal processo de “corporalização clonada” se dá: o modo como o treinamento do bailarino é repassado e apreendido e a subjetivação em sua relação com o capitalismo. Abordarei aqui o primeiro deles. Nas aulas de dança, independente da técnica abordada, ainda parece ser muito comum a utilização de um sistema de trabalho de lógica progressiva, onde a movimentação começa mais suave no chão e vai aumentando o grau de dificuldade no centro e até chegar a seu ápice de complexidade na diagonal. A grosso modo, é como se cada local tivesse uma função fixa: um chão onde aquecer, um centro onde desenvolver e uma diagonal onde deslocar. Utilizada dessa forma a tríade CHÃO-CENTRO-DIAGONAL como estrutura básica para uma aula de dança por si só já se tornou um clichê.

A autora defende que o ensino contemporâneo em dança deva se preocupar em gerar as condições que dêem oportunidades ao desenvolvimento de projetos estéticos pessoais. Como pensar em utilizar a tríade CHÃO-CENTRO-DIAGONAL numa aula contemporânea de dança resistindo aos clichês que nos capturam a todo o momento? Terá mesmo cada local uma função definida? Como poderíamos pensar em utilizar o centro para aquecer ou para deslocar? A simultaneidade é imprescindível quando trabalhamos no centro? Ou será o centro o local por excelência para o desenvolvimento do equilíbrio longe das “muletas” da barra fixa? Será ele o local onde o bailarino deve exibir suas virtuosidades? Uma seqüência de centro pode ser aplicada indiscriminadamente a toda e qualquer aula? Qual o papel do clichê no reconhecimento e legitimação de um determinado “tipo” de aula de dança? De forma afirmamos que fazemos “aula de contemporâneo”. CHICHENÃOQUEROSERCLICHÊ. Será mesmo?

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

1. PRIMO, Rosa. “Ligações da dança contemporânea nas sociedades de controle”, pg.107-122, em Lições de Dança 5. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005.

2. MANSANO, Sônia Regina Vargas. “Sorria, você está sendo controlado: resistência e poder na sociedade de controle”. São Paulo, Summus, 2009.

Texto elaborado a partir das experiências teórico-práticas realizadas nas aulas de Estudos do Corpo III sob orientação da professora Patricia Leal em 2011-1.

4 de junho de 2011

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Quando criei este blog em 2008 tinha como objetivo apenas me auto-estimular a transformar minhas idéias pensadas e faladas em linguagem escrita. Hoje, no 732º acesso, resolvi consultar as estatísticas das origens dos acessos e qual não foi minha surpresa com o resultado acima. Quase 30% dos acesso tem origem nos EUA! Tem acesso desde o Japão, Cingapura e Eslovênia! Espero que todos aqueles que tenham acessado o Danças Sociais a Dois tenham encontrado informações úteis. Obrigada a todos!

Os Oito Elementos da Dança segundo Robert Cohan

No Capítulo “The Elements of Dance” 1, do seu livro “The Dance Workshop”, Robert Cohan propõe um aprendizado de dança desenvolvido a partir de oito elementos que ele considera como fundamentais. Ele acredita que, à medida que o dançarino vai significando cada um destes elementos no próprio corpo, seu conhecimento sofre uma progressiva transformação. Cohan denominou como técnica o aprendizado global destes oito elementos fundamentais.

1. CENTRALIDADE

Cohan considera a centralidade (a percepção do centro físico no próprio corpo) como o primeiro elemento fundamental para se dançar bem. Para ele, a centralidade é que dá unidade ao corpo quando em movimento. Uma vez que se perceba a movimentação a partir do centro, o controle do mesmo torna-se mais eficaz. Ele afirma a existência de “um ponto central identificável em nosso corpo”, único, localizado “um ou dois centímetros abaixo do umbigo, no meio da pelve, dependendo do tamanho e peso das pernas”, considerando pequenas variações individuais. Cohan até considera possível desenvolver belos movimentos de extremidades mesmo não estando “centrado”, porém não os considera como resultantes de um “mover-se bem”.

Durante os exercícios para percepção de centro motor, foi levantada a questão da viabilidade ou não de se executar um movimento que não seja a partir do centro. A turma então enveredou pela discussão sobre a unicidade e imobilidade da centralidade proposta por Cohan. O também americano William Forsythe2 questiona a premissa da estabilidade e orientação no espaço a partir de um centro único e fixamente localizado no corpo e propõe a idéia de uma multicentralidade móvel: para Forsythe, um ou mais centros podem ser ativados de forma sucessiva ou mesmo simultânea em qualquer parte do corpo, propiciando o surgimento de múltiplas cinesferas.

Curiosamente, neste texto (1986) Cohan utiliza o modelo atômico3 de Rutherford-Bohr (onde os elétrons giram em órbitas específicas em torno de um núcleo central) para ilustrar sua idéia de centralidade, apesar da postulação do princípio da incerteza de Heisenberg (“todo corpúsculo atômico pode comportar-se como onda e como partícula”) justamente no ano do nascimento de Cohan (1925). Recordei então da analogia utilizada por Helena Katz em seu livro Um, Dois, Três - A Dança é o Pensamento do Corpo 4 de que o pensamento clássico em dança estaria para a física clássica, assim como o pensamento contemporâneo para a física quântica. Dessa forma, a proposta de centralidade de Cohan, mesmo impregnadas de idéias modernistas, parece estar , mais próximo do pensamento clássico do que do contemporânea em dança?

2. GRAVIDADE

O segundo elemento proposto por Cohan é a gravidade, a força natural de atração que atua sobre todos os corpos (humanos e celestes) existente desde o princípio do universo e descrita por Isaac Newton5 em 1687. Para nós, que vivemos sobre a superfície da Terra, a gravidade é a força que nos “empurra para baixo”, que nos “pressiona contra” o solo e nos mantém em contato com o mesmo.

Cohan considera a gravidade como uma força inibidora do movimento. “Sua força para baixo é tão grande que é difícil para nós saltar mais alto que um pé no ar. Na verdade, é uma maravilha que nós possamos nos mover sobre duas patas”, diz o autor chamando atenção para os milhões de anos do processo de evolução do bipedalismo humano, caracteristica incomum dentre os mamíferos, e que hoje podemos realizar de forma automática devido a assimilação destas habilidades por nossos centros motores autônomos.

Cohan afirma que é essencial que os dançarinos desenvolvam um “profundo senso físico da força da gravidade”, dos diferentes pesos que tem cada parte do corpo durante o movimento. “Quanto mais familiarizado você estiver com energia incansável da gravidade, mais você será capaz de libertar-se da sua atração”. Em sala experimentamos tanto exagerar no peso dos movimentos (sensação a favor da gravidade) quanto aumentar os espaços interarticulares, com intenção de “sair do chão”, de “subir mesmo quando nos movemos para baixo”. A essa sensação Marcelo Moacyr chamou de antigravidade. Para mim foi especialmente interessante perceber a mudança na qualidade de peso de um mesmo movimento quando o executamos pensando em projetar o corpo no espaço, percebendo a contraposição das forças que atuam contra e a favor da gravidade durante o movimento.

3. EQUILIBRIO

Cohan propõe o equilibrio como um estado de atividade constante, que acontece mesmo quando estamos em repouso. “Na dança, o equilíbrio é, sobretudo, a arte de alcançar uma relação interna entre todos os pontos do seu corpo que você pode realizar em sua consciência”. Os estados de equilibrio são resultantes de um conjunto de tensões de apoio mútuo entre todas as partes do corpo, internas e externas, dependendo diretamente da posição do corpo durante o repouso ou quando em movimento.

Durante a experimentação do equilibrio em posições assimétricas, foi possível perceber diferentes tensões necessárias para sua manutenção e, a partir dees informação, as possibilidades de continuar o movimento. Em outras palavras, ao sermos capazes de reconhecer onde é necessário tensionar para que o equilíbrio se mantenha, descobrimos também caminhos por onde outros movimentos podem ser produzidos a partir do desestabilização da posição anterior.

Cohan sugere ainda a utilização de imagens para “encontrar uma sensação de equilíbrio interior reconhecível ocorrendo em seus músculos”. A partir desta sensação, o autor sugere sua imitação consciente para que possamos “a relação interna dos músculos, ossos, articulações, veias e nervos” e dessa forma reproduzi-la. Em casa, tentei realizar o exercicio abaixo proprosto pelo autor:

“Cruze as pernas, deixe-se inclinar para um lad, e contrabalançar com a cabeça. Agora, tente sentir a relação interna entre as partes de seu corpo. Onde existe pressão e peso? Sua coluna está curvada, inclinada ou esticada? De que forma você está contrabalançando o peso da sua cabeça? Como está o seu pé direito em relação ao seu cotovelo esquerdo? Você pode memorizar a posição e retomá-la mais tarde? Você está em equilíbrio? Se não, mude-o ligeiramente até sentir uma harmonia interior. Você pode sentir seu corpo inteiro de uma vez?”

Para mim ainda é dificil essa percepção tão minuciosa. A memorização da posição me pareceu quase impossível. Cheguei ao ponto de gravar (em audio e imagem indepedentes) enquanto experimentava e respondia às perguntas em voz alta do exercicio. Nas duas tentativas seguintes de reprodução, a primeira a partir do que havia memorizado até então e a segunda reproduzindo a partir da descrição do audio, não consegui repetir com fidelidade o que havia feito da primeira vez.

4. POSTURA

Segundo Cohan, a postura revela não só os sentimentos do dançarino, mas também pode revelar intencionalmente sentimentos em seu corpo. O alinhamento do corpo está intimamente ligado com os elemento centralidade, gravidade e equilíbrio, e por conseguinte, evoluirá à medida que desenvolvemos os três primeiros. Apesar disso, o autor aconselha trabalhar a postura de forma independente. Ele sugere ainda que para alcançarmos uma “boa postura para a dança”, precisamos mudar a percepção de nosso próprio corpo, pois muitas vezes “há uma grande discrepância entre o que se sente e o que acreditamos ser o certo”.

Em sala de aula trabalhamos com uma noção mais ampla de postura, incluindo além do alinhamento, a energia necessária para se dançar bem. Postura como um estado corporal de prontidão para a dança que o corpo se propõe a fazer. Dessa forma, cada dança teria uma postura ótima com a qual somos capazes de executar da melhor forma possível a dança que nos propomos a fazer. Investigamos as posturas no tango, da gafieira e da dança tribal. No tango, experimentamos dançar invertendo os elementos dessa postura (exemplo, apoiando-se sobre os calcanhares ao invés dos metatarsos) e discutimos a partir daí sobre a funcionalidade ou não de uma “antipostura” na dança.

5. GESTO

O corpo comunica sentimentos e idéias através de padrões de movimento. A raiva, por exemplo, é expressa em padrões de movimento muito diferentes daqueles provocados pela alegria ou pela tristeza. O gesto, quinto elemento proposto por Cohan, pode ser definido com uma manifestação do corpo que se comunica.

Durante sua evolução, a espécie humana desenvolveu uma linguagem comum do gesto como estraégia social de sobrevivência em grupo. Gestos sutis podem demonstrar cooperação, confiança ou agressividade. Braços cruzados sobre o peito são um muro de proteção. Mãos na cintura significam "mostrar", enquanto os punhos nos quadris são ainda mais desafiadores, exigindo comprovação de algo. Mãos estendidas na frente sugerem que você está pronto para dar ou receber. Segurar a cabeça para frente demonstra ansiedade; inclinála para um dos lados, interese. Elevar os ombros é um gesto de não saber ou não se importar; curvar os ombros para frente exprime dor”.

Em sala experimentamos criar e observar os gestos a partir de seqüências de movimentos. Foi possível perceber que por trás de todo movimento existe um pensamento, sentimento ou atitude. Todo pensamento gera um gesto que modifica o ritmo e o peso do movimento. Até mesmo a imobilidade, como proposta de “antigesto”, não está isenta de comunicar. A observação de si e do outro é um exercicio útil para reconhecer nossos gestos e refletir sobre o que eles comunicam, podendo ser usado que serve para criar sequências de movimento que são histórias da experiência humana.

6. RITMO

Para o autor, o ritmo é inerente ao ser humano, muito embora reconheça que algumas pessoas não estejam “tão conscientes ou sensíveis a ele”. Ele exemplifica como a vida é permeada por ciclos e ritmos, desde o passar dos tempos, com seus dias, meses e estações do ano até a frequência cardíaca e respiratória.

“Um bom senso de ritmo é essencial para a dança. Encontrar o seu sentido de ritmo é uma questão de prestar atenção”. Para isso ele sugere utilizar a música como instrumento no desenvolver da percepção rítmica. No texto, ele propõe exercícios de ritmica como encontrar o pulso utilizando palmas, o acento musical para reconhecer o compasso e deslocar-se no pulso da música, já conhecidos da turma nas aulas de Estudos dos Porcessos Criativos III.

Em sala de aula, experimentamos como as alterações de ritmo refletem no significado do gesto. Um mesmo movimento executado com ritmos diferentes pode comunicar coisas distintas. Por exemplo, uma respiração profunda quando executada em ritmo lento comunica tranquilidade, ao passo que em ritmo acelerado comunica euforia ou ansiedade.

7. MOVIMENTO NO ESPAÇO & RESPIRAÇÃO

Não houve experimentação especifica direcionada aos dois últimos elementos de dança de Cohan. Ele chamou de movimento no espaço, “a consciência do espaço ao nosso redor”. Ele considera o espaço como “um elemento tangível através do qual nos movemos”. Quanto à respiração, vale ressaltar que nossa turma já vem trabalhando de forma específica com sua consciência e “controle” durante o movimento desde o começo do semestre com Patricia Leal nas aulas de Estudos do Corpo III. Não tem sido tarefa simples perceber a respiração durante o movimento, menos ainda coordená-los e integrá-los. Apesar das dificuldades, tenho percebido o quanto a respiração é fundamental para a fluência do movimento, funcionando como um meio de expressividade.

8. NOTAS SOBRE O AUTOR

Nascido em Nova York em 1925, Robert Cohan6 teve grande influência no desenvolvimento da dança moderna na Grã-Bretanha, onde é considerado pioneiro no ensino da técnica de dança contemporânea. Estudou na Martha Graham School e em 1946 ingressou profissionalmente na Martha Graham Dance Company. Em 1957 iniciou sua longa carreira como coreógrafo. Em 1962 tornou-se co-director da Companhia juntamente com Bertram Ross. Em 1967, a convite de Robin Howard, tornou-se o primeiro diretor artístico do Contemporary Dance Trust em Londres e, como tal, fundou o The Place, London Contemporary Dance School e o London Contemporary Dance Theatre, o qual dirigiu durante vinte anos. Em 1988, Robert Cohan foi premiado com um CBE honorário em reconhecimento à sua inestimável contribuição à dança no Reino Unido, ganhando nacionalidade britânica. Em 2005, o 80 º aniversário do Robert foi celebrado com uma apresentação de gala. Não foi possível precisar se o autor ainda é vivo nos dias atuais. Entretanto tudo indica que sim, posto que seu nome consta na relação dos membros do Conselho de Governadores do The Place, London Contemporary Dance School.

9. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

1. COHAN, R. “THE ELEMENTS OF DANCE”. In The Dance Workshop. London: Gaia Books, 1986.

2. RENGEL, L. "DICIONARIO LABAN." São Paulo:Annablume, 2003.

3. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Modelo_at%C3%B4mico>. Acesso em 19/05/2011)

4. KATZ, H. “UM, DOIS, TRÊS. A DANÇA É O PENSAMENTO DO CORPO”. Belo horizonte: FID Editorial, 2005.

5. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Isaac_Newton>. Acesso em 19/05/2011)

6. Disponível em <http://www.theplace.org.uk/4696/about-the-place/robert-cohan.html>. Acesso em 19/05/2011)

Texto elaborado a partir das experiências teórico-práticas realizadas nas aulas de Estudos do Corpo III sob orientação do professor Marcelo Moacyr em 2011-1.