17 de janeiro de 2010

Dançando Idéias: Vivenciando um Processo Criativo em Dança Contemporânea Parte I – Como tudo começou...

Durante o ano de 2009 tive a oportunidade de vivenciar um processo criativo em dança contemporânea. Foi uma experiência inestimável e inesquecível. Há tanto para contar que decidi por escrever sobre ela em forma de "trilogia". Fiz questão de começar pelo princípio, contando meu drama para ingressar na turma 03, além descrever algumas peculiaridades dos meus mestres, pessoas mais que especiais. É uma espécie de tributo que dedico a eles e que se complementa com o vídeo postado abaixo. Até o final de fevereiro pretendo completar a trilogia: a parte II tratará sobre o processo de construção coletiva da turma 03 durante o primeiro semestre, enquanto a parte III será dedicada à "saga" do meu projeto pessoal durante o segundo semestre.

Foi durante os comentários da turma de Arte como Tecnologia Educacional II sobre a Mostra Dança em Processo no final de 2008 que fiquei sabendo da existência dos Laboratórios de Corpo e de Criação Coreográfica. A genuína empolgação de um grupo de colegas ao comentar seus processos criativos na referida disciplina despertou pela primeira vez em mim a vontade (e por que não admitir, a coragem) de adentrar o mundo dos processos contemporâneos de criação em dança.

Os Laboratórios de Corpo e de Criação Coreográfica são disciplinas independentes e pertencentes a departamentos distintos do curso de Licenciatura em Dança da UFBA, ambas bi-modulares. Apesar disso, são abordadas conjuntamente por uma dupla de professores como se fossem uma só. Das três turmas que seriam oferecidas em 2009, a turma 03 era justamente a que me interessava, pois era lá, sob a batuta da dupla Antrifo Sanches e Fernando Passos, onde aconteciam as discussões sobre gênero e sexualidade, temas que já faziam parte das minhas inquietações a respeito das danças sociais a dois.

Uma vez segura dos meus objetivos, me dirigi ao Núcleo Acadêmico para solicitar minha matrícula como aluna especial especificamente na turma 03. Primeira má noticia: o horário da disciplina chocava nas manhãs de sexta com meu horário de trabalho. Como eu não podia me dar ao luxo de não trabalhar, minhas faltas excederiam os 25% permitido. Começaram os banhos de água fria: ih, professor Fernando é rigoroso, ele não vai aceitar que você venha só duas vezes por semana. Droga! E agora? O que eu faço? - Fale diretamente com os professores, me disse uma funcionária do núcleo acadêmico.

Voltei alguns dias depois. Respirei fundo e perguntei: o professor Fernando Passos está na casa? - Acabou de sair não faz 5 minutos...Puxa, estou sem sorte, pensei, não sabendo que tais desencontros faziam parte da providência divina... Na semana seguinte, lá vou eu de novo: o professor Fernando está? Ele não veio hoje, mas você pode falar com professor Antrifo. Conhecia Antrifo de vista, pois em 2007 nos apresentamos durante a primeira aula de danças populares, que ele infelizmente não pode continuar. Já havia simpatizado com ele desde esse dia.

Apesar de estar bastante atarefado naquele momento, Antrifo me recebeu com seu habitual sorriso largo. Com a minha cara-de-pau bem polida expliquei a ele meu interesse pela disciplina e especificamente pela sua turma. Expus também a impossibilidade de comparecer às sextas-feiras, e que estava ciente de que o professor Fernando era exigente e dificilmente me aceitaria nestas condições. Então, no desespero, lancei-lhe minha proposta “indecente”: - olha, eu não me importo de perder por falta, mas é importante para mim estar na turma de vocês! Ele me escutou atenta e pacientemente. Depois, simplesmente sorriu e me disse: não se preocupe não, que vai dar tudo certo. Deixa que eu falo com Nandinho. Pode solicitar sua matrícula que você já faz parte da nossa turma. Saí do departamento com a sensação de que tinha ganhado na loteria!

Março, primeiro dia de aula: deu um problema com o sistema de matrícula e as turmas teriam que ser reorganizadas. Numa mesma sala, mais de 50 pessoas em polvorosa por conta do problema. Em dado momento a porta se abre e todos os olhares se voltam para ela. Ei-lo minha gente: Fernando Passos, em pessoa! Cabeça raspada, olhos verdes modelo Jack Nicholson por detrás dos óculos. Na mão uma garrafa de 1,5mL de água mineral. Sua competência era tão reconhecida quanto à sua rigidez britânica (aliás, novaiorquina). Durante aquela manhã tudo que fizemos foi reorganizar as turmas. Cada dupla de professores expôs sua linha de pesquisa. Um a um os alunos foram se realocando de acordo com seus interesses pessoais. De longe eu o observo e tenho a impressão que ele está ficando de mal humor por causa da confusão. Contagem de alunos por turma. A turma 03 extrapolou o número de alunos. Ai Jesus, como é que eu fico?

Protelei até o último momento para falar com Fernando sobre a minha ausência nas sextas-feiras. Sem escolha, decidi que chegara a hora de enfrentar a “fera”. Esperei estrategicamente até o final da aula, quando a multidão já se dispersava. Poli minha cara-de-pau outra vez e, sorrateiramente, me aproximei dele. Escolhi uma voz suave, de menina boazinha, e comecei minha ladainha: oi professor Fernando, meu nome é Evie, aquela que pediu matrícula como aluna especial. Não sei se professor Antrifo comentou com o senhor que eu não vou poder vir as sextas...E ,e preparei para escutar um indignado “DE JEITO NENHUM!”. Mas para minha surpresa ele nem deixou eu terminar de falar e disse: - Este semestre eu não poderei estar aqui às sextas-feiras, então isso não será um problema. Acho que fiquei zonza e levei alguns minutos para acreditar no que estava acontecendo. O universo parecia conspirar a meu favor!

Duas semanas depois eis que o próprio Fernando me convida para ser aluna ouvinte da disciplina Sexualidade e Performance que ele ministrava na Pós Graduação em Artes Cênicas. Alguém por favor me belisque, devo estar sonhando! Me senti nas nuvens e sem pestanejar disse SIM. No mesmo dia fui providenciar as cópias da bibliografia para tentar acompanhar a turma, que já havia começado há três semanas. A participação nesta disciplina contribuiu decisivamente para as minhas investigações. Discutimos todo o livro Problemas de Gênero da Judith Butler, além de alguns textos selecionados sobre Freud, Lacan, Foucault dentre outros. Foi o inicio da minha compulsão por leitura! Infelizmente o universo "errou a mão" e em abril eu perdi o emprego. Quer saber? Preferi encarar pelo lado bom: teria todo tempo do mundo para me dedicar aos estudos.

Aqui começo o meu tributo “Aos Mestres com Carinho”, sob a pretensão de uma breve “descrição etnográfica” desses muito queridos e especiais professores, pelos quais tenho profunda admiração, respeito, carinho e saudade. Antrifo Sanches, ex-bailarino do Teatro Castro Alves é, no sentido literal e figurativo da palavra, uma GRANDE pessoa. Do alto dos seus mais de 1,80m, é um gentleman, mas sabe “rodar a baiana” quando é inevitável...Tem uma dramaticidade natural, sempre fazendo caras e bocas, movendo mãos, braços e pernas ao som de uma voz macia e tranqüila. Dono de muitas qualidades, destacam-se a competência técnica e pedagógica, a paciência, a sensatez, o senso de justiça e a humildade. Mas no quesito COMPROMISSO ele realmente se supera! Seu codinome bem que poderia ser CONTE COMIGO. Comigo, Antrifo extrapolou as funções de professor: ele foi um amigo, um colaborador incansável, mesmo quando achava que não poderia me ajudar. Sua disposição “terapêutica” em sempre me ouvir e tentar compreender minhas angustias durante as minhas “crises de criação” foi o que me fez não desistir. Serei eternamente grata por sua crença na minha capacidade criativa apesar da minha inexperiência.

Fernando Passos, carinhosamente chamado por seus alunos de Fernandinho, é uma das figuras mais carismáticas que conheci. Adoooooora falar. Dono de uma voz grave e sedutora, domina diversos temas e diversas línguas, e freqüentemente rouba a cena e a transforma num delicioso monólogo. Pisciano passional, ama e odeia com a mesma intensidade. Felizmente está aprendendo a “ser baiano”, e hoje admite que está mais flexível do que fora em outras épocas (vejam que sorte a minha...). Por considerar o inglês como sua segunda língua, vivia desdenhando da minha “limitação lingüística”, mas no fundo acho que se divertia com o meu esforço em buscar "outras alternativas" para superar essa deficiência. De “temido”, Fernando Passos se revelou uma pessoa acessível, um colaborador empolgado. Me abriu várias possibilidades, algumas aproveitei, outras não foi possível. Me convidou para ser sua orientanda no mestrado do PPGAC, o que me deixou mais lisonjeada ainda. Mas infelizmente, o universo dessa vez não colaborou: meu PC pifou e ao fazer o backup eu perdi todos os documentos para a seleção do mestrado. Sei que o decepcionei e lamento por isso. Quero crer que a vida tenha outros planos para mim no momento.

Vivenciar um processo criativo em dança foi sofrido e delicioso. Ter experimentado a sinergia da dupla Antrifo-Fernandinho foi inesquecível e marcou profundamente minha forma de perceber as coisas. Como na canção de Joyce, eles são “como o sorvete e a cobertura. Não como um quadro na moldura, mas como coisa que completa. Como uma curva e uma reta, como o tesão e ternura, como o chinês e a bicicleta...”.

Aos Mestres com Carinho

Este vídeo é minha singela homenagem à parceria de sucesso entre os professores Antrifo Sanches e Fernando Passos no Laboratório de Corpo e Criação Coreográfica em 2009, disciplinas do curso de Licenciatura em Dança da UFBA. A vocês, meus queridos mestres, todo meu carinho e gratidão por terem me aceitado de braços abertos na turma, permitindo a mim uma experiência inestimável e inesquecível.