24 de dezembro de 2009

Projeto Diálogos no Escuro: metodologia não visual para as Danças Sociais a Dois

A visão se apresenta na nossa realidade física e social como o sentido de maior importância na captação de estímulos e projeções espaciais. Estima-se que aproximadamente 80% de nossa percepção do mundo seja visual. Durante muito tempo acreditou-se que a cognição dependia essencialmente da visão, ou seja, de que era imprescindível ver para aprender. 1

O meu desejo de experimentar metodologias não visuais para o ensino da danças sociais a dois surgiu pela primeira vez durante um exercício de improvisação por contato no Curso de Aperfeiçoamento para Professores de Dança de Salão promovido pelo Centro de Dança Jaime Aroxa (RJ) em 2002, quando foi solicitado aos participantes que fechassem os olhos. Percebi que a privação da visão aguçou os meus outros sentidos, principalmente o tato. Desse dia em diante, passei a adotar como prática fechar os olhos enquanto danço.

Em novembro de 2007 visitei o Museu do Diálogo (Campinas/SP), projeto do alemão Andreas Heinecke que proporciona a indivíduos videntes a vivência de situações cotidianas em uma área completamente escura. Durante uma hora e meia os visitantes, com auxilio de uma bengala-guia, percorrem os cinco ambientes da instalação, experimentando as diferentes sensações de vento, odores, temperaturas, sons e texturas, ao mesmo tempo que se confrontam com suas próprias limitações. E a melhor parte da história: cada grupo é guiado por um deficiente visual, que NÃO USA BENGALA DURANTE O TRAJETO!

Entrei sozinha, tensa, braço direito arrastando na parede, braço esquerdo esticado segurando a bengala-guia o mais longe possível, concentrada em não tropeçar. Encontrei meu guia lá dentro e juntos atravessamos um bosque (com árvores e chão de terra), uma mini-cidade (com direito a chão esburacado, semáforo e buzinas de carros), um lago (num simulador de barco) até chegar ao penúltimo ambiente, uma sala acarpetada onde meu guia sugeriu que eu relaxasse. A esta altura meu êxtase era tamanho que eu soltei a bengala e dancei! Com cautela, porém sem medo. Depois partimos para o Diálogos no Escuro, um bar onde se pode comprar bebidas e petiscos para beliscar durante o bate-papo com o guia.

Esta inesquecível experiência foi determinante para fortalecer em mim o desejo de desenvolver uma metodologia destituída do recurso da imitação visual, promovendo assim uma maior utilização dos demais sentidos corporais nas danças sociais a dois, o que veio a se concretizar durante o módulo Arte como Tecnologia Educacional II, do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal da Bahia, sob a forma de uma breve atividade extencionista orientada. O Projeto “Diálogos No Escuro - Metodologia Não Visual para o Ensino das Danças de Salão” foi construído em parceria com Cristiane Passos e Daniele Denovaro. Escolhemos trabalhar com portadores de deficiência visual para que a impossibilidade de imitação visual destas pessoas nos motivasse a investigar procedimentos metodológicos não visuais (especialmente táteis-cinestésicos, auditivos e metafóricos).

A deficiência visual é definida como a perda ou redução da capacidade visual em ambos os olhos em caráter definitivo, que não possa ser melhorada ou corrigida com o uso de lentes, tratamento clínico ou cirúrgico. 2 Entretanto, no âmbito social a cegueira tem um sentido de invisibilidade maior do que de escuridão. A desorientação espacial provocada pela privação da visão prejudica a mobilidade do deficiente visual, fazendo com que a sociedade o considere desajeitado e inábil para diversas atividades. Por orientação espacial entende-se a “capacidade de reconhecimento da posição corporal em relação com todos os objetos significativos do seu meio circundante” e por mobilidade a “capacidade de deslocamento do ponto em que se encontra o indivíduo para alcançar outra zona do meio circundante”. 3

O projeto aconteceu durante as quatro quartas-feiras do mês de novembro de 2008 no Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP), no bairro de Nazaré (Salvador/BA), fundado em 1998 e subordinado à Secretaria Estadual de Educação. As aulas de danças de salão se iniciaram em 2004 como iniciativa voluntária e espontânea do professor Fábio Martins. Desde abril de 2008 a atividade foi assumida por Gilmara Carvalho, professora e dançarina da Academia Baiana Dança de Salão, que gentilmente nos cedeu suas aulas durante o mês de novembro.

As aulas tiveram, em média, 11 participantes, na faixa etária de 40 a 65 anos, com um pequeno excedente de homens. O grupo mostrou-se bastante inquieto e falante, com percepção tátil-cinestésica e auditiva aguçada. A utilização de metáforas do cotidiano se revelou de grande eficiência como procedimento metodológico. Nos exercícios que propunham deslocamento aconteceram choques que permitiam o reconhecimento entre os participantes (através do toque e da fala), resultando em saudações amistosas.

Apesar do pouco tempo, pudemos perceber a evolução da turma, com abertura para a desconstrução de alguns tabus em relação à detenção do poder de escolha (condução), a necessidade de se ter um corpo específico, uma postura pré-concebida e uma consciência rítmica adequada para a dança. Em momento posterior, alguns participantes referiram grande satisfação pelo sentimento de superação. Para nós, facilitadoras, o projeto foi um exercício pedagógico importante. Esperamos que ele tenha contribuído para o desenvolvimento motor e psico-social dos participantes.

REFERÊNCIAS

1. OLIVEIRA, João Vicente Ganzarolli. Arte e Visualidade: A Questão da Cegueira. Disponível em http://www.ibc.gov.br. Acesso em 16/10/2008

2. http://www.ibc.gov.br. Acesso em 14/10/2008

3. SANTOS, Admilson. O Cego, O Espaço, O Corpo e O Movimento: Uma Questão de Orientação e Mobilidade. Disponível em http://www.ibc.gov.br. Acesso em 16/10/2008

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