“O saber-fazer na dança contemporânea seria descontrolar o corpo, quebrar os modelos, escapar dos diversos condicionamentos. Entretanto, apesar da abertura e hibridações de estéticas e trabalhos corporais, nunca antes houve uma tão intensa e rápida produção de clichês”.
Neste texto, Rosa Primo1 utiliza como marco teórico para suas reflexões sobre dança os pensamentos dos filósofos Michel Foucault e Giles Deleuze. Foucault apresenta as “sociedades disciplinares”, modelo que vigorou desde o século XVIII até a primeira metade do século XX, onde os indivíduos eram “docilizados” dentro de “instituições disciplinadoras” (escola, família, hospital, prisão, fábrica) através de “técnicas” como confinamento, normatização, exclusão, vigilância e punição/ recompensa. Contudo, Giles Deleuze aponta que a partir da segunda metade do século XX, os “muros” de tais instituições começam a desmoronar e a visão de mundo concebido a partir de dicotomias pretensamente estáveis se esfacela. Entretanto, nas emergentes “sociedades de controle”, a lógica disciplinar se encontra ainda se encontra presente, porém “fluidamente generalizada”, por todo campo social. Tais controles passam a acontecer através de dispositivos sofisticados, disseminados e naturalizados em nosso cotidiano, passando despercebidos e por vezes até mesmo desejados. Segundo Sônia Mansano, “a palavra dispositivo diz respeito a determinada maneira de dispor , de ordenar, de posicionar estrategicamente sujeitos e equipamentos. Junto com essa disposição são produzidas formas específicas de saber que, por sua vez, subsidia os programas institucionais, as regras de conduta e os diversos procedimentos de normalização”. 2
A autora afirma que as danças contemporâneas não são definidas por uma técnica e sim pelo seu projeto estético. A partir de um entendimento da lógica disciplinar como “fechada, quantitativa e geométrica” e da lógica de controle como “aberta, qualitativa e expressiva”, ela propõe uma analogia de tais lógicas respectivamente com o balé clássico e com a dança contemporânea. Entendendo que o balé clássico se configura a partir de um modelo corporal homogêneo e pré-determinado e a dança contemporânea por uma multiplicidade de técnicas e heterogeneidade corporal, ela questiona “o que no balé clássico permanece na dança contemporânea, embora funcionando em lógicas diferentes e como isso chega à dança, mobilizados pelos mecanismos da sociedade de controle”. 1
Antes consideradas alternativas, as práticas de educação somática e de análise do movimento se inseriram efetivamente na dança contemporânea, mobilizando bailarinos a considerar a singularidade de cada corpo em suas investigações. Entretanto, apesar da possibilidade dessas práticas de libertação dos “modelos sensório-motores interiorizados”, elas parecem ter sido capturadas pelo modismo, contribuindo assim para o condicionamento de corpos a esquemas repetitivos que resulta na produção de clichês: “ter consciência de seu próprio corpo tornou-se “material de moda”. E como disse Jean Baudrillard, há moda a partir do momento em que uma forma já não se produz segundo as suas determinações próprias, mas a partir do próprio modelo – isto é, nunca é produzida, mas sempre e imediatamente reproduzida” 1. Dessa forma, pode-se dizer que a padronização de movimentos é uma ações do balé clássico que permanece na dança contemporânea, embora nesta última tal processo pareça se dar “sobretudo no interior de cada corpo, não apenas sobrepondo-se a todos os corpos, mas compondo-se com cada corpo” 1.
Rosa Primo sinaliza dois “campos de visibilidade” onde tal processo de “corporalização clonada” se dá: o modo como o treinamento do bailarino é repassado e apreendido e a subjetivação em sua relação com o capitalismo. Abordarei aqui o primeiro deles. Nas aulas de dança, independente da técnica abordada, ainda parece ser muito comum a utilização de um sistema de trabalho de lógica progressiva, onde a movimentação começa mais suave no chão e vai aumentando o grau de dificuldade no centro e até chegar a seu ápice de complexidade na diagonal. A grosso modo, é como se cada local tivesse uma função fixa: um chão onde aquecer, um centro onde desenvolver e uma diagonal onde deslocar. Utilizada dessa forma a tríade CHÃO-CENTRO-DIAGONAL como estrutura básica para uma aula de dança por si só já se tornou um clichê.
A autora defende que o ensino contemporâneo em dança deva se preocupar em gerar as condições que dêem oportunidades ao desenvolvimento de projetos estéticos pessoais. Como pensar em utilizar a tríade CHÃO-CENTRO-DIAGONAL numa aula contemporânea de dança resistindo aos clichês que nos capturam a todo o momento? Terá mesmo cada local uma função definida? Como poderíamos pensar em utilizar o centro para aquecer ou para deslocar? A simultaneidade é imprescindível quando trabalhamos no centro? Ou será o centro o local por excelência para o desenvolvimento do equilíbrio longe das “muletas” da barra fixa? Será ele o local onde o bailarino deve exibir suas virtuosidades? Uma seqüência de centro pode ser aplicada indiscriminadamente a toda e qualquer aula? Qual o papel do clichê no reconhecimento e legitimação de um determinado “tipo” de aula de dança? De forma afirmamos que fazemos “aula de contemporâneo”. CHICHENÃOQUEROSERCLICHÊ. Será mesmo?
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
1. PRIMO, Rosa. “Ligações da dança contemporânea nas sociedades de controle”, pg.107-122, em Lições de Dança 5. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2005.
2. MANSANO, Sônia Regina Vargas. “Sorria, você está sendo controlado: resistência e poder na sociedade de controle”. São Paulo, Summus, 2009.
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