17 de junho de 2011

Aquilo de que somos feitos

Criação: Lia Rodrigues Intérpretes-cocriadores: Amália Lima, Allyson Amaral, Gustavo Barros, Ana Paula Kamozaki, Leonardo Nunes, Thais Galliac, Calixto Neto, Carolina Campos, Volmir Cordeiro, Priscila Maia,Clarissa Rego, Gabriele Nascimento, Jeane de Lima, Luana Bezerra. Luz: Milton Giglio Música: Zeca Assumpção Colaboração na criação: Marcela Levi, Gustavo Barros, Marcele Sampaio, Micheline Torres , Rodrigo Maia

EXIBIDO EM 17/10/2008 NO TEATRO DO MOVIMENTO (ESCOLA DE DANÇA DA UFBA)

SALVADOR / BAHIA

Assisti ao espetáculo Aquilo de Que Somos Feitos durante a 5ª edição da Mostra SESC de Artes em Salvador (2008). O espetáculo teve apresentação única no Teatro do Movimento da Escola. Apesar de terem se passado mais de dois anos, escolhi falar deste espetáculo porque nunca consegui esquecer o impacto de tê-lo assistido. Devido ao tempo decorrido, busquei apoio na dissertação de mestrado de Dani Lima1, que se propôs a analisar este espetáculo. Em sua análise, ela o dividiu em duas partes principais às quais nomeou Materialidade (parte 1) e Comunidade (parte 2). Cada uma destas partes é, por sua vez, composta de seqüências coreográficas distintas ou blocos: “Apresentação”, “Fila” e “Empilhamento” (parte 1), “Solo” e “Grupo”(parte2)”.

Entrei no Teatro do Movimento e sentei em um lugar qualquer do chão, pois não havia nenhuma estrutura cênica que determinasse um lugar fixo nem específico para a plateia. A luz de plateia ainda estava aberta, o que me deu a sensação de que o espetáculo demoraria um pouco para começar. Quando as pessoas já se encontravam dentro do teatro, a maioria sentada no chão e conversando entre si, eis que um rapaz se levanta da plateia e tira toda a roupa. Imediatamente, fez-se um silêncio total. Ele olha as pessoas boquiabertas ao seu redor e, então, ordena: “Vocês, daqui para lá!”, delimitando assim o seu espaço de apresentação e a posição dos espectadores que, rapidamente, se adequam à ordem recebida. Sem qualquer música e destacado por um foco de luz branca e difusa, o dançarino se move produzindo imagens bizarras com seu corpo. Levanta-se, atravessa a plateia e delimita o novo espaço de apresentação, agora juntando-se a outro bailarino, também nu.

Dani Lima considera que no bloco “Apresentação”, (composto de quatro seqüências: um solo, um trio, um duo e outro solo) como um momento de “valorização da dimensão material do corpo”.

“Esta materialidade aparece como um organismo que tem características próprias de forma, textura e mecânica. O nu, que está presente em todo este momento, torna-se condição fundamental para que este corpo – que é carne, matéria, forma orgânica, volume e massa – possa aflorar aos olhos do espectador. Um corpo que, embora nu, não tem sua sexualidade especialmente valorizada, ao contrário, parece empenhado em se tornar um volume dessubjetivado”. 1

Todas as seqüências se desenvolveram em silêncio, delimitadas espacialmente por um foco de luz branca e difusa. A cada nova seqüência coreográfica, um novo ponto de vista é sugerido pelos dançarinos nus, propondo que os espectadores estejam sempre trocando de lugar, embora mantenham a relação de frontalidade em relação aos bailarinos. Através de movimentos lentos e sutis, os bailarinos (sempre nus) vão se desfigurando causando estranhamento na forma habitual de apreciação desses corpos que dançam.

“Este corpo explora, valendo-se apenas dele mesmo, formas estranhas, não reconhecíveis enquanto características do corpo humano, formas estas que sugerem as mais variadas associações com figuras que ocupam nosso imaginário, como corpos despedaçados, invertidos ou deformados, animais bizarros e monstros. É curioso notar que nenhuma destas figuras é explicitamente citada. Não há truques ou mágicas, para além do jogo explícito de ilusão de óptica, que nos direcionem a imaginar coisas que não estão ali. Apenas um e às vezes dois ou três corpos que se contorcem, se alongam, mostram ângulos e combinações inusitadas, partes e movimentos pouco vistos comumente (seja na vida, seja na dança), e, no entanto, o espectador é levado a criar sentidos para o que vê”. 1

Começa o segundo bloco da parte 1, a “Fila”: em cena cerca de oito bailarinos nus, enfileirados de pé, lado a lado, imóveis durante alguns segundos “nas posições da rosa dos ventos (de frente, de lado, de costas)”, para em seguida executarem uma seqüência em uníssono que começa com movimentos lentos dos braços e finaliza com todos os corpos estendidos no chão. A partir deste momento, o espetáculo vai construindo a relação entre ocorpo- matéria” do momento inicial e o ambiente no qual ele está inserido. O tempo parece dilatar-se, como se antecedesse um momento de tensão. E é o que acontece no bloco seguinte.

O “Empilhamento” foi a parte do espetáculo que mais me impressionou. Nus, todos os bailarinos em cena vão ao chão e deitados de barriga para cima, olhos abertos e fixos no nada, eles começam a se deslocar e se amontoar uns sobre os outros, tal como peixes recém tirados da água. O amontoado de corpos também me fez lembrar os corpos empilhados nas covas dos campos de concentração. Pedaços de carne que se debatiam de forma caótica, como se lutassem para não deixar de existir. Mesmo nus e tão próximos, o referencial humano ficava cada vez mais distante. A pilha de corpos tão logo se forma é desfeita, e os bailarinos-coisas se deslocam em movimentos convulsivos em direção à plateia, literalmente atropelando as pessoas sentadas em seu percurso. Os espectadores aturdidos reagem inseguros sobre o que devem fazer. Alguns ainda tentam segurá-los, mas a maioria acaba reagindo com repulsa, desvencilhando-se o mais rápido possível do contato com aqueles pedaços movediços de carne. Os bailarinos-coisas se juntam novamente, próximos à parede oposta de onde o empilhamento começou. A plateia é “deixada em paz”, mas uma tensão desconfortável se instala entre nós, espectadores, até o final do espetáculo.

Para Dani Lima, a segunda parte do espetáculo, “Comunidade”, está mais próxima da perspectiva de representação: corpo, figurinos, música e estrutura composicional convergem no sentido de trazer para a cena um universo referencial. “O uso de roupas características da juventude, a marcha militar, as palavras de ordem e slogans, assim como a tonicidade explosiva empregada na execução dos movimentos e falas dos bailarinos, tudo isso tematiza a efervescência política dos anos 1960/70”. 1

No bloco 1, “Solo”, o mesmo bailarino que se despiu no inicio, agora se desloca com roupas de uso cotidiano por entre os espectadores (que se encolhem durante sua passagem) com movimentos que remetem às artes marciais, ao mesmo tempo em que diz, de forma aparentemente aleatória, nomes de países, guerras, calamidades, slogans políticos e comerciais. Enquanto isso, os demais bailarinos que estavam contra a parede se levantam e se vestem. A roupa parece devolver ao bailarino sua condição humana e agora, sua torrente de suas palavras é que parece querer empilhar-se sobre a plateia, como bem o faz o bombardeio publicitário que nos atinge diariamente sem sentirmos. Como nas palavras de Giles Deleuze, citado em Rosa Primo:

“Informar é fazer circular uma palavra de ordem, ou seja, quando nos informam alguma coisa, nos dizem o que julgam que devemos crer...Não nos pedem para creer, mas para nos comportarmos como se crêssemos...O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema de controle”. 2

Não posso recordar com precisão, mas acredito que foi no intervalo entre os blocos da segunda parte que as luzes da plateia se acendem e o espetáculo é “interrompido” com a entrada da coreógrafa. Lia Rodrigues que exibe um banner onde se lê “Patrocínio da Petrobras”. Ela, então, enrola o banner encobrindo a palavra patrocínio e diz que está mostrando o banner porque faz parte do contrato a exibição da marca patrocinadora. Então, de crua e objetiva revela que tal patrocínio é, na verdade, um financiamento, visto que a verba recebida foi captada através da Lei Rouanet e que, portanto não saiu diretamente dos cofres da empresa. A intervenção inesperada de Lia convida a plateia a refletir sobre a política brasileira para financiamentos artísticos. Ela sai de cena e a luz volta ao estado anterior.

No último bloco da parte 2, “Grupo”, os bailarinos delimitam com fita crepe um espaço central onde acontecerão as “apresentações” e um espaço marginal, onde o público deve se colocar. Todos os bailarinos aparecem vestidos com roupas cotidianas joviais, o que os aproxima da condição de pessoas comuns. Ao som de uma espécie de marcha militar, eles dançam (primeiro um quarteto, depois pequenos solos e duos, por último em grupo), e entoam palavras de ordem, discursos, canções-símbolos e slogans políticos. Juntamente com a plateia, eles parecem formar um grande exército do consumo e do progresso. As falas não dão conta da mesma complexidade das imagens, mas é inegável que existe ali uma dramaturgia de imagem e sons.

Em Aquilo de Que Somos Feitos tudo é produto: corpo, fala, apresentação, roupas, dança. Tudo é crítica, que não dissocia forma de conteúdo. Acredito que a escolha pela não delimitação entre palco e plateia e a interação com os dançarinos em certos momentos do espetáculo exigi um posicionamento do espectador, o que me pareceu totalmente coerente com a proposta de reflexão política do espetáculo. Ficar neutro é simplesmente impossível. Observei as mais diversas atitudes dos espectadores: surpresa, assombro, choque, rejeição, nojo, rejeição, risos. Impossível ficar indiferente. Três anos depois dessa experiência, os ecos deste espetáculo ainda são muito claros na minha memória.

1. LIMA, Dani. Corpo, política e discurso: a dança de Lia Rodrigues”. Disponível em <https://docs.google.com/Doc?id=dgrjd8pf_1csgbswfm&pli=1>. Acesso em 01/06/2011.

2. PRIMO, Rosa. “Ligações da dança contemporânea nas sociedades de controle”, pg. 107-122, em Lições de Dança 5. Rio de Janeiro: Editora UniverCidade, 2005.

Texto elaborado para a terceira avaliação do Módulo Estudos Críticos-Analíticos III sob orientação das professoras Daniela Amoroso e Helena Katz em 2011-1

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