SOBRE AS DIFICULDADES DE ESTAR A BORDO
Quando criança, eu
era uma leitora assídua dos gibis da Luluzinha e como ela tinha um “Querido
Diário”, cismei que teria um também. Mãe, eu quero ter um diário! E lá fomo nós
na papelaria comprar aquele que eu acreditava que seria meu companheiro de
segredos. Escolhi um modelo com fecho-cadeado, sim porque todo diário que se
preze deve ser capaz de manter a sete chaves os segredos a ele confiados
guardados. O meu tinha apenas uma frágil chavinha, que eu cuidava de manter bem
escondida dos curiosos da família, mudando o local do esconderijo de tempos em
tempos. Apesar de sentir orgulho do meu cobiçado tesouro, essa minha primeira
experiência com um diário não foi promissora. O fato é que meu lado Emília
sempre superou o meu lado Luluzinha. A caneta nunca foi páreo para a língua! O
pouco da minha tagarelice que foi deglutida e chegou até meus dedos só
aconteceu por pressão escolar (tenho que escrever porque é para nota).
Uma década depois,
remexendo nos meus guardados, reencontrei o famigerado caderninho trancado.
Como já não me lembrava onde havia sido o último esconderijo da chavinha,
cortei a alça onde se prendia o fecho-cadeado e me pus a folhear as páginas praticamente
em branco, quase todas encabeçadas com a frase “meu querido diário”, a mesma
usada pela Luluzinha. Naquela época o que importava era TER o bendito diário, e
não registrar alguma coisa nele. Pobre diário, nunca havia sido “querido” de
fato. Nunca lhe confiei nenhum segredo, apenas breves registros de
acontecimentos. Coisa de criança boba isso de ter um diário, pensei ao jogar no
lixo o inútil caderninho. E assim, nunca mais quis saber de diários!
Em 1989 entrei para o
curso técnico profissionalizante em química. Meus escritos, quase sempre analítico-descritivos,
foram sendo eficientemente moldados na impessoalidade fria das ciências exatas
(e posteriormente nas da saúde) onde a credibilidade do processo é diretamente
proporcional ao distanciamento entre o observador e seus processos. Durante
treze anos de minha vida pratiquei confortavelmente tal distanciamento, e cada
vez mais recebia elogios pela minha escrita clara, coerente, neutra, impessoal.
Afinal, cientista que se preza não se envolve com seus próprios processos! Descrever
e analisar meus processos de fora nunca foi um problema. Eu me orgulhava desse meu
estilo “científico” de escrita e tinha plena convicção de era assim que tinha
de ser feito.
Fui uma escritora
eventual e feliz até 2003, quando, durante minha especialização em saúde
coletiva, foi proposto um diário de campo como atividade de estágio. Fiz uma
descrição primorosa das atividades da primeira semana e fiquei chocada quando a
orientadora apontou como problema o que eu considerava como a minha maior
virtude: “- Seu texto está muito bem escrito, mas você não está presente nele.
É preciso observar os processos de dentro deles”. Aquilo me soou como uma
espécie de blasfêmia! Não podia conceber que verbos conjugados na primeira
pessoa do singular e plural comprometessem a credibilidade da minha escrita! Não
podia aceitar que meus textos fossem invadidos por EUs e NÓSes! Já não me
sentia segura frente aos meus próprios processos. Era como me despir na frente
de estranhos. A Ciência jamais perdoaria tal heresia. Maldito Diário de Campo!
Mas não me deixei
sucumbir sem lutar. Insisti na impessoalidade, construindo frases decentemente
iniciadas com “realizou-se, obteve-se, observou-se, conclui-se”. Mas meus
orientadores não me deram trégua. Continuaram me atordoando com a mesma
pergunta “- Cadê você no texto?”. Aos poucos e muito a contragosto, acabei me permitindo
o uso de EUs e NÓSes, estes últimos menos sofrido, posto que podia dividir a
culpa de tal infração com outras pessoas. Os EUs continuavam a ser um árduo
exercício de imersão. Foi então que me dei conta de que vivia um paradoxo:
enquanto lutava para me manter fora dos meus escritos, o meu discurso falado
era sempre cheio de EUs! Quem sabe eu não seja um caso de TBP (transtorno
bipolar pronominal): momentos de EUgocetrismo verborréico intercalados com
momentos de CALE-SEgrafia autoexcludente (será que existe remédio para isto?)
Tive que lidar com
esse problema durante todo o ano de 2003. Respirei aliviada quando ele
terminou! Agora, oito anos depois, o módulo Estudos dos Processos Criativos I resolve
evocar o fantasma do Maldito Diário. Primeiro rejeitei-o, depois, veio o
bloqueio: não tenho vontade de escrevê-lo. Depois me permitir arriscar, pois agora
o contexto é outro. As Artes e as Ciências Humanas têm me animado a estar a
bordo dos meus processos criativos. Os EUs e os NÓSes já não me incomodam mais,
pelo contrário, gosto de me ver grafimaterializada naquilo que escrevo, afinal
as palavras faladas são levadas pelo vento.
Então, decidi “chutar
o pau da barraca”, autoprofanar a minha “escrita cientificamente correta”. Mais
do que um simples registro das minhas vivências durante o módulo de Estudos dos
Processos Criativos I, este diário é um exercício de estar a bordo de mim
mesma, de trilhar novos caminhos textuais, de deixar que minhas percepções e
sentimentos durante os meus processos de criação em dança guiem os meus dedos
no teclado. Diferentemente do que fiz a vida inteira, não me preocuparei em
descrever detalhadamente todas as atividades da qual participei. Selecionarei os
aspectos que mais despertaram interesse e refletirei sobre ele. Tomarei licença
poética e me permitirei todos os neologismos que tiver vontade. É bem possível
que essa minha insurreição resulte em um texto mal escrito, desconexo,
incoerente, confuso ou até mesmo ridículo. E daí? E se assim for, o terá sido
em conseqüência de possíveis turbulências vividas durante tais processos em que
estive a bordo. Assim, é de minha livre e espontânea vontade me permitir “surtar”
para desfrutar dessa oportunidade (talvez única, talvez a primeira de muitas) de
falar sobre mim mesma. Bem vindo a bordo e boa leitura!
SOBRE A TRANSVERSALIDADE ENTRE OS MÓDULOS
A presença de Clara Trigo
durante a primeira aula de Estudos do Corpo I (ECO I) me deixou ao mesmo tempo
feliz e confusa. Seria a ela a “professora a contratar” para ECO I ou fora Estudos
dos Processos Criativos I (EPC I) tinha mudado de horário? Nenhuma coisa nem
outra, ela havia acordado com as galinhas apenas para participar da aula e
conhecer a turma mais cedo. Notebook ligado, ela ora digitava, ora fazia um
pedaço da aula, ora parava para conversar com Gilsamara ou Marcinha. E a minha
curiosidade só aumentava. Criativa e irreverente, o que estaria ela
“aprontando” com aquela visita temporã?
Tive que esperar até
a aula de EPC I para entender o sentido daquela visita. Clara nos propôs uma
atividade de criação em dança a partir do que tínhamos vivenciado na aula de
ECO I. Gosto da proposta de transversalizar os módulos (pena que os Estudos
Críticos Analíticos sempre fiquem de fora). Essa disposição de Clara em
extrapolar seu horário de trabalho para que, desde o começo, possamos
relacionar nossos futuros processos de criação em dança com os movimentos
estudados em ECO I só aumentou a admiração que tenho por ela desde o semestre
passado, quando tive o prazer de ser sua aluna em ECO IV.
Clara tornou a fazer
isso outras vezes mais. Acho que sua estratégia de trabalho contribuiu para o
aparecimento freqüente e espontâneo de vários movimentos que temos estudado em
ECO I durante o atual processo criativo coletivo da turma. Quando estou
improvisando e estes movimentos emergem, fico feliz em perceber que eles
ficaram registrados no meu corpo mais do que eu supunha, posto que sinto uma
certa dificuldade em memorizar seqüências.
SOBRE O USO DO TOQUE COMO ESTÍMULO
O toque para mim é
talvez o mais poderoso estímulo para a improvisação. Neste semestre fizemos vários
experimentos utilizando o toque. Um dia a sala foi dividida em grupos de quatro
a cinco pessoas duas situações distintas, onde se faziam necessárias entrega e
confiança para trabalhar com os olhos fechados. Num primeiro momento o desafio
era deitar no chão e relaxar o corpo de modo a permitir que os outros membros
do grupo o manipulassem. Percebi a necessidade de confiar para perder o medo de
ser machucado, estar disponível para deixar-se levar, sem deixar de desempenhar
um papel ativo. Gosto muita dessa entrega. É uma sensação parecida a que sinto
durante o contato de improvisação e as danças de salão. Chegar neste estado
ótimo de relaxamento que permita a manipulação do outro, mas que não implique
num abandono de si mesmo só é possível se houver concentração e entrega de
ambas as partes. Para mim foi um exercício muito gostoso!
Na segunda situação,
o desafio era praticamente o oposto: quem estivesse de pé no centro da roda
deveria enrijecer o corpo para tornar possível ser empurrado pelos demais
colegas do grupo. A confiança e a concentração continuaram sendo necessárias
para resistir à vontade de abrir os olhos pelo medo de cair. Entretanto a
condição corporal neste momento foi o contrário do momento anterior: a
imobilidade promovida pela rigidez era imprescindível para o trabalho daqueles
que empurravam.
Após o exercício
discutimos sobre a compreensão dessa “entrega” como corpo disponível para a
interferência do outro em relação à idéia de passividade sem autonomia. Clara
colocou que “o tempo todo estamos negociando entre as possibilidades e as
regras”. Essas discussões sempre me interessam muito, pois me são úteis para
refletir sobre muitos aspectos da minha prática corporal e pedagógica nas
danças de salão. Outros pontos levantados e que achei especialmente
interessantes foram sobre a confiança transmitida pela qualidade do toque,
sobre a necessidade que o dançarino tem de se dispor ao risco, sobre
comprometimento do grupo em um trabalho que foi, ao mesmo tempo, coletivo e
individual.
Reconheço ainda que
busco o toque como estímulo mesmo durante um aquecimento improvisado que
começou individualmente, onde escolhi partir dos rolamentos de Gilsamara
buscando no chão um substituto para a minha “dependência epidérmica”. Fico
animada quando ao saber que vamos trabalhar em duplas! Vejo que só sobrou
Carol, então vou deslizando pelo chão até ela e, tão logo a distância permita,
eu toco seu corpo e a gente começa a improvisar a partir do contato.
Reconhecemos isso logo de cara (“tá virando contato, né? Diz Carol).
O toque da pele é um
estímulo mais eficiente que o chão e por isso me sinto mais motivada a dançar
em dupla. Trocamos de dupla e eu dancei com Jamile. Dessa vez, foi ela quem me
tocou primeiro, me levando pela mão. Alguém segurando a minha mão me remete
imediatamente a minha prática de danças de salão. Comecei a variar as
qualidades do toque. Juntamos-nos a outra dupla que estava próxima por
solicitação de Martha. A improvisação por contato continuou.
Durante a discussão
coletiva levantou-se a questão da condução (opa, isso aí muito me interessa!).
Nas duplas, trios, ou grupos é relevante que exista uma condução ou um
condutor(a)? É possível haver condução sem perder autonomia? Achei legal Viola
ter utilizado o termo “proponente de movimento”, o mesmo que adotei há alguns
anos nas minhas aulas de danças de salão. Renner falou em “pedir a permissão do
toque”, no sentido de respeitar a privacidade do corpo do outro. Alguém
observou que “quando a gente se acostuma com o corpo de alguém e depois muda ,
há um certo choque até se acostumar de novo”. Alguém falou que o olhar cria uma
“predominância” sobre os demais sentidos, podendo mesmo “atrapalhar na
intimidade de dançar com o outro”. Muito
do que foi discutido neste dia eu transpus para minhas reflexões nas danças de
salão.
STUDIEN FÜR VIOLA (ESTUDOS PARA VIOLA)
Sei que tudo o que vivenciamos tanto nas
aulas de EPC I quanto fora delas contribuiu para o nosso atual processo “coletivo-unificado”
da turma (leia-se “grupão”). Mas se
eu fosse escolher um momento par começar a contar a nossa história, começaria no
dia 11 de abril, quando experimentamos pela primeira vez a proposta de Viola, nossa
colega alemã com pinta de prenda gaúcha, inspirada nas estratégias de criação
das poesias concretas que Clara nos mostrou na aula anterior. E assim nasceu o que batizei como Studien Für Viola.
Neste dia eu estava
exausta da aula de ECO I e confesso que estava achando complicada a proposta de
Viola, que desenhava com esmero e precisão vinte pontos eqüidistantes entre si,
arranjados em formato losangular. Olhei tanto para aqueles losângulos e via
moléculas de benzeno (que são hexágonos e não losângulos). Mas nem mesmo todo o
meu gosto pela simetria conseguia me animar, pois havia muitas coisas não me
agradavam.
Como relatei no
semestre passado há muitos anos atrás perdi a motivação para a dança solo. Já
as “dinâmicas de multidão” (carnaval dentre outras festas populares) me provocam
certo tipo de pânico. Então imagine o meu estado de ânimo frente à perspectiva
de experimentar as duas coisas ao mesmo tempo! Embora sem a mínima disposição,
eu me resignei a participar do experimento. Uma eternidade parece ter se
passado até que Viola estivesse satisfeita com as nossas posições iniciais
(acho melhor alguém trazer trena e giz na próxima aula, para ela marcar os
lugares no chão).
Entendi que a idéia
era reproduzir o movimento da pessoa do seu grupo que estivesse à frente dos
demais, uma espécie de líder. A mudança de direção provocava a mudança de
liderança. Pelo menos não terei de decorar seqüências, pois cada um vai
improvisar a sua. Então é só imitar o líder e rezar para a liderança não virar
para o meu lado.
A primeira
experiência foi sem música (Senhor tem misericórdia de mim!). Eu me concentrava
para me movimentar mantendo o bendito quadrado ao qual pertencia. Estava me sentindo
um pino preso no chão, que podia mudar de direção, mas tinha mudar a distancia
dos outros pinos. Paramos e Viola quis experimentar algumas modificações ao
mesmo tempo, e aquele experimento me parecia cada vez mais confuso e
desanimador.
A coisa melhorou um pouco quando colocaram
músicas, mas algumas das músicas escolhidas tinham a batida muito evidente e a
turma entrou numa espécie de aeróbica chata e desgastante para mim
(decididamente estou ficando velha!). Gente, que tal experimentarmos outras
músicas? Graças a Deus a turma concordou. Aos poucos os quadrados foram dando
lugar a outros arranjos e foram surgindo solos, duos, trios e outros grupos
maiores, que a todo o momento se rearranjavam. Viola agora nos vê como
constelações.
Acho que o registro em vídeo para posterior
análise dos nossos processos tem sido determinantes para a evolução do mesmo. A
sugestão de Martha para realizarmos entradas e saídas foi um divisor de águas.
A idéia da liderança foi a que mais permaneceu, mas com novas regras
silenciosamente acordadas durante as experimentações, que agora tomaram
formatos de Jam Sessions.
Improvisar junto tem
gerado intimidade entre o grupo, que tem resultado no desenvolvimento tanto
individual como coletivo. O vocabulário de movimentos foi ampliado (acho que as
aulas de ECO I têm contribuído para isso). A percepção do espaço cênico mudou.
Parece já haver uma preocupação em preencher os espaços vazios, seja com
dançarinos, seja com elementos cênicos. A idéia de sincronia se mantém mesmo
quando existem diversas células coreográficas em cena. Cânones também tem
aparecido. Descobrimos que podemos usar a parede, a barra, até mesmo as
janelas.
Não saberia dizer em que momento a coisa
começou a ficar divertida e motivadora para mim, que a cada dia me surpreendo
participando com prazer de Studien Für Viola.
Relatório final apresentado como avaliação do componente Estudos dos Processos Criativos I, sob orientação das professoras Clara Trigo e Martha Saback em 2012-1.
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