Projeto de
pesquisa apresentado (e aprovado!!!!!) no processo seletivo para ingresso na turma 2015 do Programa
de Pós Graduação em Dança – Mestrado Acadêmico da Universidade Federal da Bahia
Uma questão a
investigar
“Achei
ótimo vocês duas dançando, mas não consegui perceber quem estava fazendo o
homem” - disse admirada uma das damas do baile ao ter me visto dançando com
outra mulher, com ambas se revezavam na condução. Nascia assim, há sete anos, a
questão de dança de salão a investigar que tem orientado o meu percurso na
Escola de Dança da UFBA.
“Basta ter uma questão a investigar, você
tem?” - repetia com tranqüilidade a professora Adriana Bittencourt, me
incentivando a participar da seleção para aluna especial do mestrado em dança. E foi assim que, em
2007, comecei minha história nesta Escola. De 2008 a 2010.1, enquanto
aluna especial da graduação, a questão foi se desenvolvendo em estudos
corporais, coreográficos, críticos-analíticos e pedagógicos.
Foi quando me dei conta de que a questão
havia crescido e que deveria seguir na licenciatura, agora como aluna regular.
Desde então fui me libertando das certezas e acolhendo as dúvidas até que elas
se tornassem um hábito. E a questão seguiu ganhando maturidade. Em 2012, ela
começou a mostrar vocação para a pesquisa, primeiro na forma de um projeto de
mestrado como exercício de escrita, logo depois como projeto de estágio
curricular até que, finalmente, desabrochou como o trabalho de conclusão de estágio
E Se...? Possíveis brechas pedagógicas
para uma dança de salão dialógica, crítica e criativa, defendido em 2013. Incansável,
a questão se revisou e novamente se apresenta como projeto de mestrado, dessa
vez decidida a encarar a seleção.
Inquietação pessoal. Investigações
corporais, artísticas, crítico-analíticas, pedagógicas. Prática de estágio. Exercício
de reflexão e escrita. Experiência de vida. Mas a questão acredita que seu
melhor ainda está por vir, por isso insiste em reticências, sedenta por se
tornar aprendizado de pesquisa. E que o mestrado seja apenas o começo dessa
vontade de seguir em frente!
Discursos habitam
corpos
“Na raiz de todo
dispositivo está, de algum modo, um desejo demasiadamente humano de felicidade”.
(AGAMBEN 2009)
“Penso,
logo existo”. Ao declarar a
supremacia da razão/mente sobre a emoção/corpo, o racionalismo cartesiano
disseminou, a partir do século XVII, uma concepção binária de mundo, alocando
as coisas em pares binomiais hierarquicamente relacionados. Quase quatro
séculos depois, apesar do surgimento de novas idéias e tecnologias, o
pensamento cartesiano ainda permanece impregnado na sociedade contemporânea.
Um exemplo disso é a hegemonia de um
modelo binário, machista e heteronormativo de sexo, gênero e desejo que divide
a humanidade em “homens/ masculinos/ que-gostam-de-mulheres” e “mulheres/
femininas/ que-gostam-de-homens”, negando a possibilidade de outras identidades
fora do par binomial. Além disso, ao associar os homens à razão e as mulheres à
emoção, tem naturalizado a supremacia deles sobre elas. Tal modelo parece ter
encontrado na pretensão elegante das danças de salão um terreno fértil para a
sua (re) produção.
Binárias em suas coreografias e
discursos, as danças de salão[1]
são tradicional e majoritariamente praticadas por um homem e uma mulher, onde eles
pensam e conduzem, enquanto elas sentem e seguem. Tal prática naturaliza uma
aquisição de conhecimento assimétrica, onde pressupõe-se que, para dançar bem,
eles precisam saber mais que elas. Dessa forma, as danças de salão parecem ter (re)
produzido com sucesso um modelo social binário, machista e heteronormativo em
seus ambientes de ensino e entretenimento (bailes).
No universo das danças de salão, para além do sexo,
gênero e sexualidade, uma pessoa dança papéis sociais: ela será um cavalheiro ou
uma dama a partir da parte coreográfica que esteja executando. Quando alguém
dança a parte complementar à do seu sexo, diz-se que essa pessoa está “fazendo”
o cavalheiro (condutor) ou a dama (conduzida). Nas milongas queers, onde se pratica tango com
alternância de condução, a condição de ativo/passivo se mantém, apesar dos
termos cavalheiro/dama terem sido substituídos pelos de condutor/conduzid@. Ou
seja, a performance parece manter-se binária e hierárquica.
Na cena atual das danças de salão em Salvador uma
mulher que sabe, e mais ainda, que pratica a condução é motivo de assombro. Presume-se,
inclusive, que nós não tenhamos interesse em desenvolver tal habilidade. Uma
mulher que conduz outra mulher ainda se justifica pelo quase sempre menor número
de cavalheiros. Já se ela conduz um homem isso costuma ser motivo de piadas. Se
ela o conduzir sem consentimento prévio, o fato é visto como afronta e
desrespeito, como se ela quisesse ser mais homem que ele. Agora, se ela ousar
conduzir ao mesmo tempo que ele, a coisa beira o incompreensível e inaceitável!
O episódio do “afinal quem estava fazendo o homem”
descrito no início serviu
como ignição tanto para despertar em mim uma observação mais atenta dos dizeres
como para que eu experimentasse outros fazeres, na tentativa de subverter seu
modelo hegemônico binário, machista e heteronormativo e de provocar reflexões
sobre os dizeres e fazeres das danças de salão. A primeira intervenção experimentada foi o ato de “roubar e devolver” a condução, especialmente
dos cavalheiros, de forma inesperada e sem consentimento prévio. Com o passar do tempo, a estratégia do
“roubo” se transformou em interferências concomitantes à condução, sem que haja
necessariamente mudanças na posição do abraço. Desde então as interferências
simultâneas na condução tornaram-se minha principal estratégia para dançar a
dois.
Neste projeto de pesquisa me proponho a apontar as danças de salão como dispositivo produtor
de fazeres e dizeres que atuam na manutenção de um modelo social hegemônico binário,
machista e heteronormativo de sexo, gênero e desejo nos bailes e práticas de
Salvador, esperando ser capaz de vislumbrar possíveis brechas por onde desativá-lo.
É provável que este projeto ganhe
contornos etnográficos, já que meu lugar de fala será o de
pesquisadora-praticante nos bailes de danças de salão, de onde registrarei os
fazeres e dizeres através de anotações, filmagem, depoimentos, questionários e
entrevistas semi-estruturadas aplicadas aos praticantes destas danças. A partir
dos dados coletados procederei à caracterização e análise crítica do baile, por
mim entendido como lugar de prática compositiva de coreografias sociais
dançadas a dois. Para fundamentar o desenvolvimento crítico, analítico e
político dessa discussão escolhi me aproximar de teóricos como Greiner e Katz
(corpomídia), Foucault (discursos, dispositivos e relações de poder), Agamben
(dispositivos e profanações), Butler (gênero e performatividade) e Setenta
(dança e performatividade).
Apesar do seu amadurecimento nestes sete
anos de vida, acredito que a questão necessita de um aprofundamento
teórico-prático que permita propor as danças de salão como objeto de pesquisa
plausível de produção de conhecimento científico. Leituras críticas, analíticas e políticas
que problematizem os fazeres e dizeres das danças de salão, discursos que
habitam corpos que dançam e estão no mundo, tem sido no mínimo raros. Acredito
que seja papel da Universidade contribuir com estudos dessa ordem, na
necessidade de produção de conhecimentos sistematizados, colaborativos que
dialoguem com outros setores da sociedade e sirva de referencial teórico para
outras pesquisas neste campo. Dessa forma, a dança como área de conhecimentos
se fortalerecá e suscitará a necessidade de suas intervenções em outros campos
de atuação.
Danças de salão. Manifestação cultural. Tradição. Código de conduta de damas e
cavalheiros transmitidos de geração a geração. Gêneros performados em passos, compassos,
métricas, músicas. Sedução, autocontrole. Fazeres e dizeres de um comportamento
elegante. Por onde desestabilizá-los?
[1] Conjunto de danças sociais
executada por casais, constituída por sua vez, por diversos subconjuntos denominados
“ritmos”, cujos vocabulários coreográficos se relacionam estreitamente a um
repertório musical. Daí a opção pelo uso da expressão no plural.